domingo, 15 de outubro de 2006

Pita, o eremita

Feriado é pra ser comemorado com churrasco. E churrasco tem que ter cerveja (muita cerveja), pão e, essencialmente, muitas pessoas - velhos amigos, de preferência - conversando, rindo e jogando o tempo fora. Ultimamente, também há alguns churrascos que têm carne, mas são poucos. E são bons os churrascos com carne, pois combina com a cerveja.
Com Pedro não foi diferente. O convite era para que passassem os cinco dias [cinco pra eles, dez para ele] de folga no sítio numa cidade do interior, mas que fica bem perto da capital. Por gostar muito da minha casa, preferiu inventar uma desculpa e convencer os velhos amigos de que o melhor a fazer era uma confraternização - ou churrasco - no final de semana e pronto, ponto.
Foi o que foi feito, com muita correria. Porta-malas lotado de isopores lotados de cervejas lotadas de diversão embebida em gelo transformado em água bastante gelada. E, nos assentos revestidos de couro, os viajantes deixavam a cidade em um clima de viagem animada (os viajantes, os carros nas ruas, as ruas que desaguavam nas estradas, as estradas que atravessavam cidades e as cidades por onde passavam os viajantes ficavam magicamente alegres), e a cerveja que tomavam às dez da manhã do sábado somente acalmava os ânimos dos quatro que riam, conversavam, relembravam, riam, faziam piadas e riam mais ainda. E, enquanto falavam sobre faculdade, música, exatas, humanas, cursinho, carro e garotas, o carro passava as placas de quilometragem na rodovia e Pedro descobria que se você viaja num dia de manhã e essa manhã está ensolarada, a viagem será boa.
Adriano dirigia, Augusto fingia indicar o caminho, Igor puxava os assuntos, Pedro olhava a paisagem e os quatro riam do carro que os seguia. Em meio a uma conversa, o co-piloto e dono do sítio disse que seu primo já estava lá com os amigos e, por isso, não precisaríamos se preocupar com muita coisa. Nem com o churrasco. "O último churrasco que eu preparei, nem o gato quis comer. Mas não tem problema, meu tio mora lá no sítio. Ele toma conta de tudo, se a gente precisar", tranqüilizou. Augusto também disse mais alguma coisa que nenhum dos outros pareceu ouvir.
Depois de passarem por rodovias pavimentadas e lisas, estradas um pouco pavimentadas e uma estrada nem um pouco pavimentada e completamente esburacada, chegaram ao sítio. Descarregaram o carro, abasteceram a geladeira e encarvoaram a churrasqueira. Tudo era alegria, tudo era diversão. Até que os que já estavam na casa de campo acordaram, os velhos colegas de classe de Pedro na sétima série. Conversas e piadas não faltavam. E, enquanto abriam uma, duas e vinte cervejas, os dez meses de distância eram contados em um círculo.
Pouco depois, tudo ficou mais quente. O sol saiu e a churrasqueira foi ligada. Ninguém percebera por quem, até que se viraram e viram um sexagenário de cabelos compridos, amarrados em rabo de cavalo e cobertos pro um boné azul. "Ah, esse é o tio do Augusto", Pedro imaginou. "E... ah, é melhor ele cuidar do churrasco, mesmo".
Depois que tudo tinha ficado pronto, o homem das carnes se retirou. Sem nenhuma palavra, assim como quando chegou. Ninguém pareceu perceber ou se importar. Porque tudo era alegria: o sol, o mato, o calor, a conversa, a cerveja, o pebolim, a música sertaneja que puseram pra tocar, o futebol que jogaram, as vespas e os marimbondos que voavam ao lado de todos, as conversas em volta da piscina, as pessoas do outro carro que passaram a tarde dormindo por conta das coisas esquisitas que fumaram ao longo do dia. Tudo. Inclusive o pica-pau que apareceu por lá, pousou sobre a proteção de alumínio da lâmpada e se pôs a bicar sem se cansar, fazendo um barulho engraçado e tomando a atenção de todo mundo.
Até que chegou a aurora e os surpreendeu.
Os que foram confraternizar o sábado trocavam de roupa, colocavam os tênis e preparavam-se para a volta. Entravam no carro, tomavam as últimas cervejas e reclamavam cansaço. Logo depois, saíam do carro para arrumar a casa que estavam deixando.
- Sobrou um pouco de coração cru.
- Leva pro tio Pita.
- E com o açúcar que queriam fazer caipirinha?
- Leva pro tio Pita.
- Aqui tem um saco de limão que...
- Tio Pita.
- Vai levar essa garrafa de álcool?
- Leva lá pro meu tio.
- As grelhas são suas?
- Não, eu vou devolver pro meu tio.
- Qual o nome do seu tio?
- Epitáfio.
Quando tudo estava pronto e todos estavam no carro, o tio Pita saiu de sua casa (sua casa ficava do outro lado do sítio, longe do lugar onde todos ficavam e se divertiam) e ficou observando o carro em que Pedro estava. O garoto se sentiu inquieto e, então, resolveu puxar assunto com Adriano e Igor, que estavam já prontos para voltar a São Paulo.
(não gosto do jeito literário e repetitivo de relatar uma conversa. Então fica esse, mais simples, em que temos o P de Pedro, A de Adriano e I de Igor)
P: O tio do Augusto não falou nada o tempo todo, só ficou dentro de casa, né?
A: É por isso que o Guto disse que ele não gostava de gente.
I: Ele disse isso?
A: Disse. Quando a gente tava vindo, não lembra?
P: Aham. Mas sabe como é o Agusto, né? Mas mesmo assim, eu pensei que ele morava com a mulher dele aqui.
I: Não, ele mora sozinho. Já pensou?
P: Sozinho?
I: Aham.
A: É... já pensou ficar aqui o tempo todo, sozinho, sem falar com ninguém?
I: Ah, ele deve conhecer alguém por aqui. Deve pegar o carro e ir pra cidade tomar um rabo de galo e falar sobre qualquer coisa.
P: Não parece. Ele deve ficar aqui o tempo todo.
A: Já pensou? Eu não faria isso.
P: Nem eu.
I: Eu também não, mas... na idade dele, deve ser a melhor coisa.
A: Nem tanto.
P: Eu também não concordo. Quer dizer, se eu morasse com a minha mulher aqui, só nós dois, tudo bem. Eu faria companhia pra ela e ela pra mim. Mas sozinho...
E todos param a conversa para imaginar como seria morar sozinho em uma cidade pequena, longe de tudo e de todos. Tiveram o pensamento interrompido com um sinal do tio Pita para que abaixassem o vidro do carro. Todos se surpreenderam com a tentativa de comunicação por parte do solitário.
- Vocês sabem voltar?
- Não. A genta ia fazer o caminho que a gente pegou pra vir pra cá, mas ao contrário.
- Melhor não. Tem outro caminho que é mais fácil. Saindo daqui, vocês viram à esquerda, vão até o final, depois viram à direita. Vão reto, até acabar a estrada de terra. Aí vai ter o cruzamento entre duas estradas, e aí é perigoso. Pára, olha pros dois lados, vê se não vem ninguém e só aí você segue. Não corre, é muito perigoso (e sinalizava os cruzamentos com os dedos do meio). Muita gente não olha, acha que é não tem perigo e aí, ó (e fez o sinal de "se fodem". Todo mundo aqui deve saber como é, então não tem por que explicar).
Os amigos saíram, viraram à esquerda, depois à direita. Adriano correu, tentou ultrapassar uma moto na curva. Conseguiu, mas chegou ao cruzamento e quase bateu com outro carro cujo motorista não prestara atenção. O Eremita avisou. E aí Pedro passou o resto do dia pensando.
Pensando em como seria viver sozinho, sem mais ninguém no mundo. Pedro era um garoto sozinho, que gostava de observar o mundo e tirar as suas conclusões - quase sempre acertadas. Pedro, sim, era um garoto sozinho, mas que não conseguia viver sem mais ninguém. Precisava falar uma palavra a cada três horas, que fosse. Imaginou como seria viver sozinho, sem nenhuma garota. Sem nenhuma garota e sem pai, mãe, irmão, amigos e cachorros mais amigos do que os amigos. Ficou com medo. E ficou com medo de observar o mundo e ter vondade de viver sozinho em uma chácara.
Pedro chegou em casa, deitou na cama e dormiu por estar cansado. E sonhou com o seu epitáfio.
"Jaz aqui Pedro Veroveraar, o Eremita. Alguém que tentou se isolar e, para isso, se interiorizou. Encontrou coisas muito importantes sobre si mesmo e reconheceu quem era. Viveu sozinho, entendeu e descobriu o mundo. Mas nunca se descobriu e muito menos se entendeu. Nunca soube seus dons e nem o que lhe era valioso. Nunca soube quem era. Morreu sozinho, recluso em seu paraíso niilista. Era dono de sua imaginação, que fazia com que tivesse um nome diferente a cada dia e a cada relato."
-x-
As personagens realmente existem. No entanto, algumas tiveram seus nomes alterados pelo motivo chamado minha vontade. Mas os nomes foram modificados de acordo com um critério que eu determinei e já esqueci.

Um comentário:

Sheyla disse...

Você é sempre identificável (o que é bom).

Estamos muito ruins e niilistas por esses dias, não?

Acho que precisamos de um McFlurry com calda de morango e M&M. Não?