terça-feira, 30 de setembro de 2008

30/set; 5.844 dias depois

Um dia desses eu cheguei em casa um pouco estressado. Nada de lá muito relevante, mas assim que parei meu carro na vaga na garagem, não tive muita vontade para sair de lá. Desliguei o motor, aumentei o som e me deixei ficar jogado no banco, apenas olhando o nada e pensando na vida.

Fiquei um tempo assim, quando então comecei a brincar de apertar os pedais do freio e da embreagem. A colocar as marchas, a brincar de dirigir com o carro parado na vaga. Como eu gostava de fazer com o carro da minha mãe – ironicamente, um bem parecido ao meu – quando eu tinha uns cinco anos.

Passei lá um tempinho, ouvindo a música em um volume aceitável e brincando de dirigir. Até que girei a chave, joguei uma água no vidro e ativei o limpador de pára-brisa. Fiz isso mais uma vez, e mais uma, e mais uma... Eu me divirto com o limpador de pára-brisa, para falar a verdade. Tem uns 15 anos que eu sou assim.

Em uma das vezes em que girei o contato para limpar o pára-brisa, acendi o farol e vi à minha frente um dos jardinzinhos do meu condomínio. Meus amigos e eu costumávamos correr por ali nos idos de 1997, 98, 99... quando brincávamos de esconde-esconde ou polícia-e-ladrão. Era divertido, eu tinha uns esconderijos bem legais.

Naquela época ninguém podia subir muito tarde. Todos éramos muito, muito amigos. Todos jogávamos futebol, depois conversávamos sobre a partida, depois brincávamos de esconde-esconde, conversávamos sobre novos esconderijos ou sobre aquela vez em que não-sei-quem salvou o mundo e fez tal pessoa contar mais uma vez.

Hoje ninguém mais corre por aquele jardinzinho, nem mesmo a molecada pequena. O lugar está todo bonito, com a grama bem-aparada, algumas plantas e tal. Na nossa época, no máximo tinha grama e uns galhos jogados no chão. Era divertido, a gente sempre corria por ali.

Na nossa época... na nossa época muita coisa era diferente por aqui. O parquinho não tinha grama, era todo de areia. A gente se sujava à beça, levava bronca porque estragava as meias... mas sempre valia a pena. Desbravar o esgoto (um canal que leva a água da chuva até um terreno baldio no final do condomínio) era sempre uma aventura. Legal também era quando aparecia um cachorro vira-lata por aqui, todo mundo adotava o mascote e se divertia com ele. Faz vários anos que eu não vejo um cachorro se perder por aqui.

Hoje em dia eu não vejo muita coisa por aqui, mesmo. Mal vejo meus amigos. Vários já se mudaram para outros prédios. Tem um que foi para Campinas; outro, para Botucatu... muitos outros que estão fazendo faculdade aqui em São Paulo e ainda moram no nosso condomínio, mas têm horários diferentes do meu. Quanto muito a gente se encontra para tomar uma cerveja na sexta à noite. Era mais legal quando a gente fazia vaquinha e comprava esfiha para comer na pracinha.

Muita coisa mudou. Sinto falta de viver tudo aquilo de novo, uma época em que não tínhamos preocupação alguma. E... bom, eu estava ali, jogado no banco do meu carro esperando o mundo acabar em barrancos.

Por sorte, o mundo não acabou. E ainda virou alguns dias até chegar hoje. É 30 de setembro, 2008 e tal. Faz 16 anos, eu estava em um quarto de hospital com minha avó, meu avô e meu tio, sentado na beira da cama da minha mãe esperando para conhecer meu irmão. Aí chegou aquela coisinha mirradinha, de cabelos loirinhos e tal no colo da enfermeira. Chorão, banguela. Segurei no colo. Aquela era... meu... irmão.

Minha mãe se esbalda de rir quando conta a primeira coisa que eu disse ao ser apresentado ao meu irmão. Como não vi os dentes dele, comentei na hora que deveríamos levá-lo urgentemente ao Doutor Acley (que era o dentista da minha mãe na época) dar um jeito no meu irmão. Eu lembro vagamente desse momento, para ser sincero.

Do último dia de setembro de 1992 até 2008, puxa, como o tempo passou. Meu condomínio mudou, os jardins daqui mudaram, a pintura dos prédios também. Meus amigos mudaram e se mudaram também.

A única coisa que não mudou muito é aquela coisa de que, sempre que eu olho para o meu irmão, vejo uma coisinha mirradinha de cabelos loiros (mesmo ele já estando quase do meu tamanho). Ele sempre vai ser meio chorão, aos meus olhos. E tarraqueta, azedo, manhoso. Ainda mais quando ele está no banco da frente do meu carro quando estamos indo à dentista.

Hoje vou ver meu irmão com 16 anos. Quando entrar em casa, me desvencilhar do cachorro que fará festa ao me ver e eu olhar meu irmão, acho que vou ver novamente aquela coisinha tarraqueta banguela. Acho que essa sensação não vai mudar.

Ainda bem.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Resposta ao internauta

Faz uns dias, o Feedburner me mostrou que uma pessoa qualquer acessou o Cavaleiro com Solitária em busca de informações sobre como chamar uma garota para sair. Ele digitou “como chama uma garota pra sai” e voilá, caiu aqui de pára-quedas, já que o Google aponta meu blog como a quarta opção de busca para uma pergunta esdrúxula como esta.

Seja lá como for, não é raro que buscas assim resultem em acessos estranhos neste espaço. Toda semana tem uma ou outra pessoa que aparece por aqui a fim de receber a fórmula para alguma das coisas mais difíceis desse mundo. Se eu soubesse como chamar exatamente uma garota para sair, não acharia que sou um cara tão mal-resolvido como às vezes penso. Mas... vou tentar responder à sua dúvida, caro garoto de 12 anos que não sabe algo que eu também não sei.

Chamar uma garota para sair requer uma boa conversa, uma boa desculpa e, acima de tudo, muita paciência. Nunca diga exatamente que você a está chamando para sair, porque ela simplesmente lhe dará alguma desculpa furada e você passará o sabadão à noite vendo Zorra Total. Tente ser misterioso, se conseguir. Mas eu sei que não rola.

Para falar a verdade, chamar uma garota para sair nunca é uma boa solução para conseguir sair com a tal garota. Elas sempre têm um arsenal incrível de coisas para fazer no exato momento em que você a convida para fazer algo. Eu, por exemplo, já recebi respostas do tipo “vou ao enterro da minha tia” ou “a minha avó acabou de quebrar a perna e eu tenho que ir para lá”. E você, panaca como eu, continua insistindo.

Mas calma, o mundo não vai acabar apenas porque é praticamente impossível chamar uma garota para sair. Há uma solução, e apenas uma, para você conseguir sair com quem você realmente quer: não chame. É sério. A melhor coisa a fazer é a egípcia e, simplesmente, esperar ela chamar. O máximo que pode acontecer é ela nunca fazer isso e vocês nunca mais se falarem, mas é um risco que se corre.

Digo isso por experiência própria. Parando para pensar, acho que nunca consegui trocar um beijo com alguma garota que eu chamei pra sair (ok, pode achar que o titio aqui é um fracasso com o sexo frágil). Algumas até toparam sair, mas... não, nunca rola.

O melhor mesmo é esperar um convite. Ele sempre vem, basta saber aguardar e dar as brechas certas para que isso aconteça (gostar de café é uma boa se você já tiver mais de 18 anos... mas como você deve ter no máximo 15, contente-se com um milk-shake de Ovomaltine do Bob’s).

É estranho, mas é a mais pura verdade. Esse mundão doido em que a gente vive está com os valores completamente invertidos. Agora, são as garotas que têm que nos chamar para sair. É a vida, mas... ah, e não é que sempre vale a pena esperar?

domingo, 28 de setembro de 2008

Sumiço

E se um dia eu desaparecesse da sua vida?

Assim... sumisse. Pedisse para alguém te falar que me mudei para o México, parasse de atender seus telefonemas, parasse de freqüentar os mesmos lugares que você... simplesmente fingisse que perdi também teu endereço, teu número de telefone, todas as cartas que você me mandou... e fingisse para mim mesmo que você nunca existiu?

Todos os dias eu ando pela rua e me perguntou se já está na hora de sumir não só da sua vida, mas da de várias pessoas. Eu gosto de bancar o desaparecido de vez em quando, ver se as pessoas realmente vão me procurar depois disso.

Raras são aquelas que vêm atrás de mim, pra falar a verdade. Antes eu me emburrava um pouquinho, depois com o tempo eu passei a perceber que a maioria das pessoas é apenas composta por figurantes que têm falas predefinidas e logo depois voltam para o limbo da coxia.

E você? Será que você viria atrás de mim? Iria se lembrar de mim se visse alguma coisa na rua, se ouvisse alguma música que você sabe que eu ouvia... ou se alguém te dissesse alguma coisa que eu dizia? Não sei, fico em dúvida. Eu realmente lembraria. Eu sempre lembro muita coisa, e quase todas bem inúteis. Às vezes, tenho a sensação de que a minha vida é, na verdade, um apanhado de lembranças.

Eu não sei, mas acho que você não viria me procurar, não faria um esforço maior e nem bolaria um jeito de me surpreender – tipo fazer vigília na frente do meu trabalho, ou na porta da minha casa. Melhor não, mesmo. Eu te acharia meio louca, mesmo.

E sabe o que é pior? Eu sumiria, você não me procuraria... mas eu te procuraria. Eu sempre faço isso. Por mais que eu prometa para mim mesmo que nunca mais vá atrás de uma pessoa de cuja vida eu decidi sumir, eu sempre acabo mandando um e-mail perguntando as novidades.

Humpf.

sábado, 27 de setembro de 2008

E-mail não enviado, um tempo atrás

Hey,

Sabe? Queria te contar uma coisa. Ou várias. Ou... sei lá, talvez sejam várias coisas resumidas em uma, não sei. E antes que você ache que eu enlouqueci de vez, deixa eu começar a explicar.

Ouvi aquela sua música pela primeira vez... ah, eu lembro exatamente o dia em que ouvi aquela sua música pela primeira vez. Eu estava lá, um pouco desconfortável e espremido em uma cama que não era a minha. Acordei com você se levantando cuidadosamente ao meu lado, passando por cima de mim e indo tomar banho.

Enquanto o chuveiro fazia barulho, eu fiquei lá deitado apoiando minha nuca sobre o travesseiro e sobre as palmas das mãos e pensando como era um homem de sorte. Depois você entrou no quarto, ligeiramente iluminado pelo sol que também se comprimia pelos buraquinhos da veneziana, e estava enrolada em uma toalha verde. Achou que eu estava dormindo, tirou a toalha, colocou um vestido (e como eu gostava daquele vestido!), calçou os chinelos e foi para a sala.

Saí do quarto não muito tempo depois. Também tomei um banho e fui para a cozinha, onde tomamos café-com-leite e comemos pizza amanhecida. Você, então, colocou o mini system com um CD que começou com o vocal calmo do Paul e um violãozinho. “Essa música diz muito de mim, sabia?”, você me disse. E cantarolou toda a música enquanto me olhava tomar café-com-leite e comer aquela pizza horrível de pêssego.

Aquela música ficou na minha cabeça por um bom tempo. Alguns meses. Todos os dias ouvia aquela música várias vezes. Geralmente quando eu devorava vários cigarros lamentando cada acorde da música e esperava o tempo de entrar no trabalho. Chegou um dia que eu decidi odiar aquela música, e simplesmente parei de ouvir.

Um tempo passou, até que um dia eu estava no meu carro indo para o cinema com uma outra garota. Estava ouvindo Ohio, do Bowling for Soup (aquela que começa tipo She said she needed a break, a little time to think. But then she went to Cleveland, with some guy named Leelan that she met at the bank). Logo depois começou a tocar aquela música, que me pegou meio desprevenido (não lembrava que tinha gravado o som naquele CD).

A garota ao meu lado disse que a música era bonitinha, perguntou de quem era. “É do Paul”, eu falei. “Paul? Que Paul?”. “Paul... McCartney”, expliquei. Ela fez uma cara de quem já tinha ouvido falar aquele nome (claro, poxa!). Tentei clarear a mente dela “Sabe? John, Paul, George, Ringo...”, elucidei. “Hum... de que banda eles são?”, ela perguntou. “Beatles!?”, respondi meio sarcástico.

Ela, então, disse algo que realmente me incomodou. “Sabia que eu nunca ouvi Beatles?”. Olhei incrédulo, soltei uma exclamação. “Como assim você nunca ouviu Beatles?”, indaguei. “Ah, nunca... nunca ouvi nenhuma música deles, acredita?”. Aquilo me chocou, de verdade. Coincidentemente ou não, aquele foi o último dia em que fomos ao cinema.

Mais um tempo se passou e, um dia desses, acordei com uma enorme vontade de ouvir essa música. Tomei banho, fui para o trabalho feliz da vida ouvindo aquela música, vivendo um outro dia. E não me lembrei de você um instante sequer.

Não lembrava mais que aquela era a sua música. Acho que a transformei na minha música.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Orgulho de ser pé-rapado

“Fanta lalanja, né?”, perguntou a dona velhinha do restaurante.
“Sim. Obrigado”, confirmou o cliente, que foi para sua mesa.

“Ah, você eu sei. Você é o djornarista, né?”, comentou a dona velhinha do self-service chinês na Santos com a Brigadeiro, agora para o cara estranho se preparando para pagar a conta do almoço. Respondi que sim, já dando minha filipeta de papel e sacando o VR do bolso.

“Você trabalha muito, né?”, ela puxou assunto. Respondi afirmativamente, apesar da minha jornada de cinco horas diárias. “Sim, eu sei. Djornarista trabalha muito. Já vi você aqui de final de semana, você não descansa, né?”. Disse a ela que folgava de vez em quando, não ia bancar o chinês mão-de-obra escrava para a tia chinesa.

“E... você escureve assim, também?”, perguntou ela, rabiscando um papel com a caneta. Falei que sim, mas que também escrevia assim (e fiz gestos de pessoas digitando). “Ah, e para onde você escureve? É... djornal, da banca?”. “Não, não. É para a internet, é ainda pior”, brinquei. Ela fez cara feia, compassiva com o meu ritmo alucinado de trabalho.

Digitei minha senha nada secreta do VR, agradeci a ela por mais um almoço delícia e barato do self-service chinês, coloquei a mochila nas costas e saí. “Ei, djornarista. Palabéns, viu? Sua porofissão é muito bonita, admiro muito quem é djornarista”, comentou.

Tive não faz muito tempo uma ferrenha discussão sobre o que me levou a fazer jornalismo e não me importar em ser um pé-rapado nos próximos 40 anos (muito embora muitos imbecis do meu colégio façam administração e tenham potencial de ganhar 10 vezes mais do que eu). Um dos meus argumentos era esse, o falso glamour que a profissão desperta, sobretudo nas pessoas mais velhas.

Saí do restaurante um pouco orgulhosinho de mim. E vim trabalhar mais animado.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Perdendo a viagem

Rodoviária aqui perto de casa, um dia desses. Domingo, já à noite. Um cara feliz da vida se preparava para embarcar no ônibus que o levaria de volta para casa.

Esperou para ser o último da fila. Enquanto todos os outros passageiros entravam no ônibus, despedia-se da garota que o acompanhava. Uma bela garota. Linda, eu diria.

Até que chegou a sua vez de entrar. Deu o último beijo do final de semana, pisou no primeiro degrau... desceu correndo, deu mais um beijo e voltou ainda mais feliz para o embarque.

Entregou o bilhete da passagem para o motorista, que não rasgou o tíquete. Olhou feio para o último passageiro, que por sua vez não entendeu o que estava acontecendo.

“Qual o teu problema, cara?”, perguntou o motorista.
“Como?”, indagou surpreso o cara.

“Você é trouxa ou é viado?”, emendou o motorista, elevando a voz.
“Qual o teu problema, cara?”, provocou o passageiro.

“Me diz, que porra é essa no teu bilhete?”, prosseguiu, bem nervoso, o motorista.
“O quê? Tem aí meu nome, meu telefone, meu RG...”, enumerou.

“Aqui, ô babaca! Nas observações, diz ‘te amo, gostosinho’. Que merda é essa?”.
“Ah, aqui? Ah! Hahahahahaha! Não fui eu que escrevi, e...”

“Não vou te embarcar com isso. Tchau”.

O motorista entrou no ônibus, fechou as portas e deu a partida, nervoso. O quase-passageiro, com a mala nas mãos, olhou para trás. Viu a garota linda rindo, gargalhando, sentada em um banco.

“Foi você?”, ele perguntou.
“Hahaha, sim. Desculpa”, ela disse em meio às risadas.

“Mas... e agora, como eu faço? Era o último ônibus pra minha cidade, e...”.
“Relaxa, querido. Dorme em casa mais essa noite, amanhã eu prometo que deixo você ir”.

Cara de sorte.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O mundo é dos goiabas

Ele era feio.

Sei que não sou lá grande coisa, mas... não, ele era bem, bem feio. Em tudo, inclusive no jeito de entrar no metrô. Reparei nele quando estava sentado em um banco virado para a porta, e ele pisou no vagão todo desengonçado. Não demorei para reconhecê-lo. E foi uma péssima apresentação.

Para falar a verdade, já o tinha visto umas vezes antes em umas fotos no Orkut. Nem mesmo com auxílio de luz, photoshop ou coisas do gênero ele se salvava nas imagens. Um amigo meu até comentou que ele tinha uma cara igualzinha à de alguém que teve o rosto queimado, apagado com pauladas e umedecido com limão. Uma tristeza.

O feioso também me olhou, e deve ter me reconhecido. Também já tinha olhado meu Orkut, e provavelmente tinha visto as minhas fotos. Para falar a verdade, ele era o novo casinho de uma garota que não muito tempo atrás tinha sido meu casinho. Ficamos naquele clima de quase guerra-fria por um tempo, até que chegou a estação Ana Rosa e eu desci para fazer a baldeação (além de panaca, morava longe).

Antes, claro, dei uma olhada para ele mais uma vez e constatar: puta que pariu, cara feio. Tinha cara de mulherzinha (e é sério), mas com uma barba de cachorro pelado e molhado (e barba é um dos poucos assuntos dos quais eu posso falar com orgulho). Usava aparelho fixo, e os dentes eram bem amarelados pelo cigarro.

O cabelo dele não merece designações justamente porque ele era semi-calvo (e, por maioria de votos, ultimamente passei a ver que meu cabelo não é tão caso perdido assim – ainda que eu esteja quase parecendo uma versão latina do Johnny Ramone quando saio do banho).

Cheguei não muito tempo depois no trabalho. Mesmo depois de andar um tempo pela Paulista, almoçar e tal, não consegui deixar o caso passar batido. E até comentei o indesejado encontro com o pessoal da redação, no corredor quase que inteiro de estagiários da GE.Net.

O Pedroso, um dos estagiários, rapidamente se virou e respondeu: “Relaxa, cara. O mundo é dos goiabas, você nunca percebeu?”. “Como assim?”. “Pode notar. Todos os caras que saem com uma garota depois de você não são extremamente esquisitos?”. “Hum, sim. Falei sobre com alguém esses dias”. “Então. Enquanto você, todo pomposo, tá aí... o goiaba tá lá com a tua ex”, finalizou.

Malditos goiabas.

Você

Você me faz ficar muito mais confiante do que eu sempre fui. Me faz andar pela rua, mesmo em uma segunda-feira, com um sorrisão estampado no rosto (e daí que eu não vou ter folga nos próximos 11 dias se eu te vi ontem?).

Você me faz dormir muito, muito tarde. Me faz também gostar de acordar cedo, para aproveitar mais a minha vida com você. Me faz gostar de ir dormir para poder sonhar com você, mas também me faz não dormir tanto para não sonhar você, e sim viver você.

Você... ah, você me faz esquecer o meu trabalho mesmo quando o mundo está prestes a acabar. Me faz cumprimentar todo mundo por aí, mesmo aquelas pessoas de quem eu não gosto. Me faz andar por aí prestando atenção em tudo, até mesmo nos menores detalhes da vida, para poder ter uma história legal para você.

Você me faz querer arranjar algum motivo irrelevante para brigar com você. Me faz querer ficar daquele jeito emburrado só pra ganhar confete. Me faz querer ser seco com você para te ver arranjar alguma coisa bonitinha para me fazer confessar um sorriso enorme e ficar sem palavras – mas não mais seco.

Você me faz acreditar que eu fico bem de barba, sem barba, com costeletas, cavanhaque ou com a barba por fazer. Me faz acreditar que meu cabelo fica bom tanto curto como comprido. Me faz acreditar que meu sorriso vale o mundo. Me faz acreditar que eu posso conquistar qualquer garota do mundo, mas me faz querer dispensá-las apenas para ficar com você.

Você me faz querer sonhar o próximo dia, o próximo mês, o próximo ano. Me faz querer ter logo 41 anos, para que eu possa dizer por aí que conheço você por mais da metade da minha vida. Me faz querer dizer por aí que você foi o que de melhor me aconteceu nos últimos 20 anos.

Você me faz querer chegar logo aos 64 anos de idade para poder viver When I’m sixty-four. Me faz querer, já meio calvo e gagá, levantar com dificuldade da minha poltrona para trocar um fusível quando ficarmos sem luz em casa. Me faz querer vestir um casaco de lã que você tricotou para sairmos a um passeio em um domingo.

Você me faz querer mesmo envelhecer 44 anos em um dia. Me faz ter vontade de te levar para uma cabana com nossos netos, que não te deixarão por um minuto e ficarão no teu colo o dia inteiro. Me faz esperar um cartão de Dia dos Namorados, assinado ‘da sua velha’.

Você me faz um bem danado, já te disse isso?

Você não existe.

E uma pena que não exista literalmente falando.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

45, segundo tempo

Olhou pela janela para viver aquela vista pela última vez. Aquela janela que, nos melhores dias, deixava trespassar uma luz clara, brilhante e pura do sol nas mais belas manhãs que ele já vira. Daquele sol que o esquentou quando ele deitou na cama em um domingo para se esquentar, mas nem precisou – o abraço que aconteceu naquele momento valeu muito mais do que qualquer calor.

Viu aquelas casinhas ali embaixo, tão pequenininhas. Ele sabia que nunca mais as veria. Aproximou-se do parapeito para inspirar aquele ar pela última vez. Viu, do lado de fora, um copinho de plástico com alguns tocos de cigarro lá dentro. “Ela andou fumando, que pena”, pensou.

Não quis mais olhar pela janela, e sim esquecer aquela vista para sempre – mas sabia que não conseguiria. Virou-se após respirar fundo e viu a porta aberta. A porta branca, testemunha de tudo o que se passara naquele quarto. A porta, que já não era mais puramente branca, tinha sido enfeitada com desenhos psicodélicos que não faziam sentido algum.

Queria ficar ali por mais um minuto para desvendar o que era aquilo que parecia uma lua minguante. Queria ficar ali por mais algumas horas para desvendar todos os desenhos. Queria ficar ali para sempre, mas sabia que não podia. E o choro, entalado na garganta, quase explodiu – converteu-se apenas em uma fungada e em duas lágrimas.

Antes de passar pela porta, deu a última volta por aquele quarto. Tirou uma caneta do bolso, escreveu qualquer coisa em um papel em branco que estava por lá. “Para você nunca se esquecer de que fez alguém te amar”. Ele achou que isso a tocaria daqui alguns anos. Prendeu o bilhete em um porta-recados, colocou suas tralhas nas costas e saiu.

Ainda havia mais uma porta por onde passar. A última. O último passo, o último instante, o último segundo. “... o último beijo?”, ele arriscou. “Acho melhor não”, ela recusou, fria, com os olhos baixos. “Um abraço, pelo menos?”. “Desculpa, querido, não quero te abraçar”, ela sacramentou.

Ele baixou a cabeça, mas teve forças para erguê-la mais uma vez. “Queria te dizer até logo, sabe? Queria mesmo, mas... alguma coisa me diz que... é adeus”, ele fraquejou. “É só um até logo”, ela confortou. Ele lhe de um beijo na bochecha. “É estranho te dar um beijo no rosto depois de tudo o que a gente viveu”, ele admitiu. Ela não respondeu; e ele saiu pela porta, que se fechou logo em seguida.

“Adeus”, ele sussurrou.

domingo, 21 de setembro de 2008

Musa do semáforo

Dia desses, duas amigas vieram me perguntar o que eu tinha. Diziam que eu andava estranho, distante, bem diferente do que eu sempre costumava ser. Para ambas a resposta foi a mesma: “Nossa, você percebeu isso agora? Eu ando assim há... meses!”.

As duas perguntaram por que, e eu respondi na hora. “Sei lá, sabe? Quer dizer... é como se eu estivesse parado no mundo. Todo dia eu vivo sempre as mesmas coisas, nada de espetacular tem acontecido ultimamente. É como se eu estivesse em uma calmaria gigantesca e o mundo estivesse todo acelerado à minha volta”, filosofei. Sei lá.

Mas teve um dia em que algo de muito espetacular quase, mas quase aconteceu. Estava esperando para atravessar a Paulista com o Frango em um sábado à tarde, eram quase 14 horas. Estávamos conversando sei lá sobre o que, eu tinha um copo enorme de café na mão e me preparava para entrar no trabalho.

Acabei me virando para o lado a fim de ver o movimento dos carros até chegar a hora certa de atravessar. Acabei me distraindo com uma garota que estava à minha frente, também esperando para mudar de lado na Paulista. Ela era... ela era linda. Baixinha, cabelos castanhos desarrumados, olhos azuis... linda, linda, linda. Tinha uma pasta do Objetivo na mão, devia estar a caminho do cursinho.

Olhei tanto para ela que a avenida ficou calma e depois agitada novamente. “Droga, dava pra ter atravessado”, comentei com o Frango. Mas continuei lá, conversando com ele e a espiando vez ou outra. Notei que ela também começou a me olhar, talvez tenha gostado da minha camiseta. Ou da minha cara de intelectual furado com óculos e barba por fazer há quase uma semana.

O semáforo abriu e ela passou a andar na minha frente. Deu umas duas espiadinhas para trás, e eu não disfarcei olhar. Ela, então, sentou-se em um degrau do Escadão e continuou me acompanhando enquanto eu passava. Dei até um sorrisinho para ela, mas acabei passando reto e fui ao meu carro no estacionamento. O Frango tinha que pegar um tênis no meu porta-malas.

“Cara, você viu como aquela menina era bonitinha?”, comentei com ele. “Pena que eu tô atrasado pro trabalho, juro que pararia pra falar com ela. Mas... opa, peraí. Já sei, vou dar meu telefone pra ela. Sei lá, não custa nada. O máximo que pode acontecer é... sei lá, ela não me ligar”, me empolguei.

Tirei da mochila uma cópia da minha última entrevista exclusiva (ok, queria me mostrar um pouquinho para a garota). Nas costas da folha, escrevi meu nome, meu e-mail (do trabalho, claro), meu telefone... ensaiei o que falar para ela (“Humm, oi. Antes que você ache que eu sou louco, bom... te achei extremamente bonitinha, mas também estou atrasado para o trabalho. Em todo caso, ó”). Daria o papel, um sorrisinho e iria para a redação.

Me despedi do Frango e passei de novo no Escadão. Mas... ela não estava mais lá. Fiquei por ali mais uns cinco minutos na esperança de ela voltar... e nada.

Fui para o trabalho frustrado. Para mais um dia de calmaria.

sábado, 20 de setembro de 2008

Sábado de futebol

Não estava fazendo nada de mais por aí um dia desses, um amigo me fez uma proposta: “E aí, Helda, vamos pro jogo do Corinthians?”. “Humm...tá bom, bora”, respondi. Combinamos um horário para nos encontrarmos no metrô e tudo ficou acertado. Não sou corintiano, mas... ir ao jogo não ia tirar pedaço.

Descemos nas Clínicas, fomos conversando sobre futebol e outros assuntos mais até chegarmos ao Pacaembu. Entramos, sentamos na arquibancada verde (pelo menos isso, né?) e continuamos conversando até o jogo começar. O estádio encheu mais, mas não ao ponto de atrapalhar a minha visão do campo.

Ao nosso lado se sentou um velhinho. Colocou uma folha de jornal no concreto e se acomodou sobre o papel. Eu, com minhas observações assaz impertinentes e irrelevantes, não deixei de comentar com o meu amigo: “Cara, você não suja a mão lendo jornal? E... sujeira por sujeira, você pelo menos salva o meio-ambiente, sei lá”, filosofei. Acho que ando pensando muito no meio-ambiente (já até propus um modelo alternativo para secadores de mão, né?).

Meu amigo concordou e seguimos um outro papo. Até que o jogo começou, saiu o primeiro gol do Corinthians e o tal do velhinho veio perguntar quem tinha balançado as redes. “É, foi... foi o Elias. É, ele que é o número 7”. “Golaço, golaço!”, ele vibrou. Sorri e passei a analisar o jogo com meu amigo.

O Corinthians fez mais um gol, e o velhinho novamente me perguntou o autor. “Dessa vez foi o Douglas”, expliquei. Até que o primeiro tempo terminou 2 a 0 para o time da ‘casa’ (embora não tenha casa, haha) e, no intervalo, o tal do ancião puxou um papo comigo para falar do jogo, e da situação do Corinthians no campeonato, e das chances de o Juventude ser rebaixado... e eu, palmeirense, tentei não decepcionar o parceiro de conversa.

A partida recomeçou e não demorou tanto assim para sair o terceiro gol. “Quem fez agora?”, o velhinho perguntou. “Foi o André Santos, senhor”, expliquei. A torcida, então, começou a cantar mais alto. Notei que ele se empolgou bastante, embora continuasse sentado. Logo, se inclinou para mim e puxou novo assunto.

“Ali é que ficam os gaviões, né?”, ele questionou, apontando para outra arquibancada. “Sim, sim”. “Que festa bonita!”, exclamou. “Pois é, não tem como negar”, reconheci. “Você sabia que essas músicas que eles cantam já são ensaiadas?”, ele prosseguiu. “Hum... ah, é, né?”, enrolei, tentando segurar o riso. “Eles ficam treinando antes do jogo, pra não errarem na hora”, ele me ensinou.

Olhei de soslaio para meu amigo, que ouvira tudo e já quase ria. Ele, corintiano, mal torcia também. Estava mais engraçado fazer comentários inúteis sobre tudo e reclamar do moleque mala de uns sete anos na fileira da frente, que não falava nada com nada, não sabia o nome de nenhum jogador e gritava gol quando a bola ainda estava no meio-campo. “Moleque filho da puta, não é pra gritar gol antes da hora que dá azar!”, meu amigo reclamava. E eu ria.

Ainda faltavam alguns minutos para o jogo acabar quando o velhinho levantou da folha de jornal, se despediu de mim e foi embora. Todo orgulhoso por ter visto seu time vencer. Nem viu que o Chicão marcou mais um, o quarto do Corinthians, em uma cobrança de pênalti. Confesso que senti falta de dizer quem foi o autor do gol.

Saí do estádio não muito contente com a vitória do Corinthians, mas... mas ah. Aquele velhinho desinformado e todo perdido, que devia acompanhar de perto os times de 50, 60 e 70, foi realmente algo interessante.

Apesar do gelo daquela tarde, saiu de casa sozinho para ver uma partida de futebol. E talvez ter a única alegria da vida, que é ver ‘os gaviões’ cantarem as músicas que ensaiam antes da partida.

Mas, nem por toda essa festa, o velhinho se dignava a sujar as calças no concreto sujo do Pacaembu.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Manhã em 1998

Faz dez anos, eu estava jogando futebol no pátio da escola com meus amigos da quarta série. O sinal para a entrada bateu faltando cinco minutos para as oito, alertando que todos os alunos do primário tinham que formar uma fila. Era sexta-feira, dia em que a diretora apareceria por lá para cantarmos o Hino Nacional. Eu acho.

Quando o ploc-ploc do salto da Dona Hermandina ecoou no pátio, todos se calaram. A diretora da escola, o falido Ateneu Ricardo Nunes, já tinha lá seus 80 anos, mas apesar da idade bem avançada conseguia respeito total de todas as criancinhas do colégio. Sempre sisuda, com vestidos de cores fortes e apenas uma mecha branca no cabelo, bastava dar um olhar penetrante para algum de nós que todos abaixavam a cabeça.

Eu sabia que a Dona Hermandina gostava de mim. Sempre fui um bom aluno, nunca tinha dado trabalho da pré-escola até aquele dia (tirando meu primeiro dia de aula). Ela sabia que eu era um menino bonzinho, sempre me elogiava, tinha um bom relacionamento com a minha mãe e sabia que eu entrei na escolinha com quatro anos já sabendo ler e escrever.

A nossa diretora também sabia que eu era absurdamente tímido para falar que já sabia ler e escrever à professora do pré (e pensar que, se eu tivesse aberto a boca, poderia ter pulado um ano e pegaria meu diploma acadêmico dentro de três meses). Sempre gostei da Dona Hermandina, apesar de ela me botar um medo danado. Mas naquele dia... naquele dia eu olhei para ela e não baixei a cabeça novamente. Sei lá, estava meio... ahn, não sei, estava um tanto chateado e pouco me importando com as conseqüências (não, não era uma rebeldia).

Depois do Hino e do sermão semanal da dona do colégio, os alunos foram liberados para irem para as respectivas salas. Quando a quarta série estava saindo do pátio, ela me puxou pelo braço e disse que queria falar comigo. “Putz, será que eu fiz alguma besteira?”, pensei. Meus amigos pegaram o corredor e entraram para a aula, e eu fiquei lá sozinho com a Dona Hermandina.

“Não vai me dar um abraço?”, ela perguntou. Com um pouco de medo, dei um abraço tímido na diretora, que logo sentenciou: “Eu sabia, Felipe. Olhei para você hoje de manhã e vi que você, um menino cheio de alegria que todos os dias chegava feliz da vida com um olhar todo brilhante, hoje estava tristinho. E seu abraço está vazio. Que aconteceu?”.

Não sabia o que responder e tentei desconversar, falando “não, está tudo bem”. “Ora, Felipe, você nunca mentiu para mim. Eu sou sua amiga”. Relutei, reforcei que estava tudo bem. Ela não acreditou. “Está tudo bem com a sua família…?”.

Ela tocara exatamente na minha ferida. Meus pais haviam se separado há menos de um mês, e eu odiava tocar nesse assunto. Eu, com dez anos, acreditava que minha família era perfeita. Ter pais separados era... um terror. Todos os dias rezava para meus pais voltarem, e naquele dia eu tinha acordado um pouco sem esperanças.

“São seus pais, não é mesmo?”, ela perguntou. Balancei a cabeça afirmativamente, deixando uma lágrima escapar. Chorando, acabei contando tudo para ela, que ficou quase uma hora no pátio conversando comigo. Ao final, pediu um novo abraço. “Vai ficar tudo bem, querido. Mas queria conversar com você, fiquei preocupada. Mas seu abraço ficou mais feliz agora”. E sorriu para mim. Em seis anos de Ateneu, poucas vezes a tinha visto sorrir.

Dez anos se passaram e até hoje não sei como a Dona Hermandina soube que justamente naquele dia eu estava mal. Até achei que a minha professora, ou até mesmo a minha mãe tinham conversado com ela. Não sei. Às vezes, gosto de acreditar que meu olhar demonstrou mesmo a minha tristeza. Sempre fui assim, alguém além da minha mãe tinha que saber isso.

Dia desses, recebi a notícia de que a Dona Hermandina morreu este ano. Tive a mesma sensação de quando passei um dia na frente do Ateneu e vi minha primeira escola falida. Nunca tinha contado essa história para ninguém, e agora sei que nunca vou ter a chance de saber como ela soube da minha tristeza naquela manhã de sexta-feira. Ok, me entristeci lembrando esse fato. E nem precisei ver meu olhar no espelho para perceber.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Casual

Sentiu algo quente no rosto quando despertou do sono profundo. Quase se assustou, mas preferiu esperar um pouco para abrir os olhos e descobrir o que estava de fato acontecendo. Parecia ser uma manhã ligeiramente fria (seu rosto estava gelado, apesar do resto do corpo quente), e aquilo realmente lhe esquentava uma das bochechas.

Alguns segundos depois, já um tanto curioso, enfim abriu os olhos. Notou que não estava em sua cama, em seu quarto. Estava em um lugar estranho, sobre um colchão bem mole e sob cobertores bem mais finos que os seus. A decoração do quarto não era lá muito bem feita, não tinha armários e nem os pôsteres dos títulos do seu time de futebol.

Mas foi olhando para o lado que entendeu melhor o que acontecia. Viu ao seu lado uma garota, de cabelos lisos e de um castanho bem escuro, pele clarinha, bochechas rosadas, uma tatuagem no ombro direito. Dormia, ainda. Dormia com um braço encolhido que terminava com a mão no rosto dele... o outro braço, estendido, o abraçava pela cintura.

Reconstruiu os fatos, mas foi apenas o barulho do aquecedor (já soltando um vento frio) que de fato o ajudou. Nunca teve um aquecedor em seu quarto, a não ser quando viajou para lugares mais frios. Olhou para o lado, viu um par de chinelos que não eram os seus. No banheiro, acoplado, toalhas limpas e um pacotinho de sabonete ainda fechado. E a noite anterior se reconstruiu.

Tinha saído mais cedo da faculdade naquela noite extremamente gelada e a reencontrado no caminho de casa. Ela, um antigo caso mal-resolvido, também tinha saído de sua faculdade mais cedo para resolver uns problemas. Conversaram um pouco, ela o convidou para pararem em um bar e tomarem um café. Ele propôs algo melhor, uma garrafa de vinho em um outro bar. Ela topou.

Mas é claro que uma garrafa de vinho não termina de um jeito normal para dois antigos amantes. Mataram as saudades das conversas, dos papo mais quentes... acabaram matando a saudades também dos abraços apertados, do beijo ensandecido, dos amassos mais quentes... e foram parar em um motel. Só foram dormir um bom tempo depois, bem depois. Satisfeitos, felizes, quentes. Ligaram o aquecedor apenas para dormirem ouvindo um pouco de barulho.

Ela notou que ele tinha acordado. Também abriu os olhos, perguntou o que tinha acontecido. “Que horas são?”, ele perguntou. “Sei lá, querido. Dorme, ainda tá cedo”, ela respondeu ainda sonolenta. “Não sei, posso estar atrasado para o trabalho, e...”, ele argumentou. “Você e esse seu trabalho. Dorme mais, vai, você merece”, ela contra-argumentou.

Ele pensou em relutar, mas não conseguiu. Ela, a fim de evitar qualquer resposta, chegou ainda mais perto dele, pousou a cabeça sobre seu peito, deu um leve beijo em seu pescoço e pegou no sono. Ele também. E se esqueceu do trabalho, da vida, de tudo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

De olhos abertos

Humm... ah, tá bom, vai, eu admito que tenho minhas excentricidades. Esquisitices, em bom português. Mas quem não as tem, não é mesmo?

E uma dessas minhas manias relativamente estranhas é a de gostar de observar (ainda que por breve instantes) durante o beijo as (não muitas, vai) garotas com quem eu já saí. E tudo começou nos primeiros anos desta década, com meu primeiro beijo. Pois é.

Tinha uma curiosidade enorme para saber como era dar um beijo em uma garota, até que o fatídico dia chegou. Era... era bem diferente do que eu pensava, e demorei alguns segundos para pegar o jeito da coisa. Até achei que o mundo chegou a parar naquele momento, e acabei sendo forçado a... sim, abrir os olhos.

E a visão que eu tive era a de uma garota – bem bonitinha, por sinal – completamente entregue a mim. De olhos fechados, inteiramente... minha, pelo menos naqueles instantes. Gostei do que vi, e passei a sempre abrir os olhos vez ou outra para observá-la.

Uma vez contei esse meu hábito para um grande amigo, que logo me censurou. “Eu já tinha percebido isso em você, cara, sabia? E, pra te falar a verdade, não é muito legal. Você pensa muito todos os momentos, tenta relaxar pelo menos uma vez na vida. Fecha os olhos, sente mais a menina e tal”.

Segui mais ou menos o conselho desse meu amigo, mas não consegui me livrar dessa mania que... ok, não é muito interessante. Médio, vai. Por causa disso, já cheguei a não dar cabo a um relacionamento que talvez me renderia algumas semanas interessantes. Mas já tive também experiências... ahn, legais.

Tudo isso graças a algo vivido há um tempo não lá muito distante. Envolvido com a garota que estava comigo, decidi abrir os olhos pela primeira vez enquanto a beijava... e, para minha surpresa, ela estava justamente me olhando. “Peraí, como assim?”, perguntei. “Hihi, tava te olhando. Tão bonitinho”, ela desconversou. “Mas peraí você! Por que você iria me olhar também?”, ela emendou. Coramos, voltamos ao beijo... e sempre que nossos olhares se cruzavam, ríamos.

Pouco tempo depois, ela me confessou: “Sabe? Gosto de te dar um beijo dos nossos, abrir os olhos e olhar você me olhando. Dá friozinho na barriga e tudo mais”. Quase fiquei sem palavras, mas consegui responder na seqüência: “E eu gosto de dar um beijo dos nossos, abrir os olhos e ver você com os olhinhos fechados. Gosto de ver você abrindo os olhos pouco a pouco e dando um sorriso enorme. E gosto de ter um friozinho na barriga ao te olhar, ao te abraçar, ao te tocar, ao te beijar”.

A resposta dela? Simples: “Ai, meu amor! Você me tira as palavras, a respiração, aumenta minhas expectativas... e me faz tão feliz!”.

Sei que tenho minhas excentricidades, mas... ah, gosto delas. E com o tempo aprendi a lidar com todas essas minhas esquisitices também. Coisas da vida.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

All together now

[Prepare-se, caro(a) leitor(a). Abaixo, segue uma ladainha relativamente inútil. Você ainda tem tempo de desistir e fechar a janela]

Era para ser um dia normal. Uma terça-feira fria de inverno, daquelas em que nada acontece e a única coisa a fazer é organizar uma contagem regressiva coletiva no trabalho até o fim do expediente. Mas era para ser um dia normal, não? Não foi, a começar pelo fato de eu estar de folga.

Faz tempo que não consigo aproveitar um dia de folga como se deve. Um bom tempo, diga-se. Meses atrás, até cheguei a fazer a loucura de pedir para meu chefe cancelar a minha folga. “Eu quero trabalhar, poxa”, argumentei. Admito que também tentei transferir minha folga quíntupla recente para um tempo mais para frente, mas o pedido não foi aceito. Foi o embrião para a terça-feira nascer anormal.

Meu dia começou relativamente normal, quando eu acordei (dã!). Tinha até traçado um esquema bacana para aproveitar minha última fase da overdose de folgas e tinha decidido ver Ensaio sobre a cegueira, no Reserva Cultural. Olhei o horário no dia anterior, memorizei... tomei banho na hora certa, fiz barba, peguei o carro e fui. Normal, né?

Só que notei algo estranho quando cheguei ao mesmo estacionamento de (quase) sempre: havia uma fila infernal de carros, algo inédito para mim nos últimos cinco meses motorizado. Tudo bem, vai. Fiquei por ali parado por uma bela dezena de minutos até conseguir deixar meu carro são e salvo em um dos estacionamentos mais baratos da região da Paulista.

Segui caminho até o cinema, e na pequena fila para comprar o ingresso senti uma fragrância que não me agradava. “Humpf”, foi o que eu pensei. Mas tudo bem, vai. Minha vez na fila chegou, pedi a entrada de funcionários da Gazeta para o Ensaio das 14h40 e... e a mulher simplesmente respondeu que não seria possível. O motivo: “o filme já começou, não tenho mais como dar baixa no sistema”, como ela me disse. “E já tem 20 minutos de filme”, completou.

Olhei para o cartaz: sessão às 14h20. Maldito engano. Acabei indo para a Praça Alexandre de Gusmão, meu melhor refúgio em horas tanto boas como ruins, e fui ler um pouco. Fazia um frio homérico, e o cinza das nuvens deixava a praça feia, pela primeira vez na minha história por lá. Não fiquei muito tempo, saí. E fui ler no Escadão. Mais vento, mais frio... mas eu agüentava.

Na faculdade, mais tarde, encontrei uma amiga que não estava muito bem. Sentia-se paranóica, dizia que o pessoal do terceiro andar estava olhando feio para ela e mais algumas paranóias inexplicáveis. Desci com ela, bancando o macho-alfa protetor, andei com ela por lá e ajudei a resolver seu medo. No elevador voltando ao quinto andar, uma das faxineiras da Fundação roçou um saco de lixo no meu braço direito, mas rapidamente se desculpou. Simpática, até. Aí se virou para a colega e disse: “Nossa, eu tava roçando o saco no homem”. O elevador inteiro riu, eu corei de sem graça.

Nem tudo, contudo, foi ruim: a professora da última aula havia faltado. Combinado isso ao fato de que eu só teria que pegar presença com o professor da primeira aula, maravilha. Mas meu professor embaçou: “Felipe, você entregou sua lauda?”. “Sim, professor, há três semanas”. “Ok, você trouxe as seis cópias hoje?”. “Hum, não. Pra quando que é?”. “Hoje”. “Hum, ok, eu vou lá imprimir”.

Achei um computador vago no laboratório, mas não encontrei o arquivo. Nem nos meus dois e-mails. Subi para o computador do trabalho, nada. “Ok, vou falar pra ele que o arquivo corrompeu, peço a cópia dele, reescrevo... e pronto”, pensei. Nada disso. De volta à sala, ele me mostrou que tinha perdido o texto original. “Beleza, eu te trago amanhã, professor”, sintetizei antes de sair do prédio.

Saí. Peguei ainda mais um frio no Escadão e fui para o estacionamento, lá pelas 20h30. No caminho, ligeiramente nervoso, parei em uma banca para comprar um maço de cigarros e espairecer. Mas o preço havia aumentado em 0,07% e eu me recusei a pagar. Fui mesmo para o estacionamento, mas não sem antes notar que eu havia perdido o comprovante.

Perdi mais algumas dezenas de minutos para comprovar que meu carro era modelo tal, cor tal, ano tal, placa tal, com som da marca tal, um CD do Ramones (o It’s Alive) na faixa 27, tanque pela metade, uma luz de ré queimada e uma raquete Wilson no banco traseiro. “Ok, R$ 20”. “Opa, 20? Mas a diária não é R$ 15? A mulher até anotou no papelzinho que eu perdi...”. “Ih, cara, aumentou hoje. Não te falaram? Se você tivesse com o outro papel eu até poderia fazer um desconto”. Era um aumento de 33,3%, 500 vezes maior do que o do cigarro. Mas... era acatar ou voltar 12 km a pé para casa sob um frio de 12 graus. Paguei.

Ligeiramente revoltado, ainda deixei o carro morrer duas vezes antes de sair do estacionamento. Não satisfeito, o dia ainda decidiu me atazanar mais um tanto criando um congestionamento gigante no caminho. Crente de que nada poderia piorar, decidi me auto-flagelar: ouvir Beatles, no afã de superar um trauma recente com o FabFour. Tirei do porta-luvas o Yellow Submarine ainda lacrado, comprado há algumas semanas... e consegui a proeza de quebrar a caixinha antes de ouvir o disco pela primeira vez.

Só que as coisas melhoraram, para minha surpresa. Quando me dei por mim, estava bolando uma coreografia ao som de All together now e até tive uma lembrança já esquecida de quando começou a música seguinte. Lembrança da última vez que eu havia ouvido Lucy in the sky with diamonds, em uma noite quente e agradável no banco traseiro de um carro em alguma estrada por aí.

Pisei em casa mais animadinho, mas meu bom-humor acabou quando falei oi para meu pai e não obtive resposta. No meu quarto, deixei a mochila cair no chão, tirei uns trocados do bolso... e encontrei o papel, antes perdido, do estacionamento. Maravilha.

Comentei esses dias, não lembro com quem, que as coisas ruins não acontecem de pouquinho em pouquinho. Todas vêm ao mesmo tempo, em uma terrível tempestade. Como a desta terça-feira, que para mim termina, ironicamente, com o Paul me lembrando: All together now, all together now, all together now, all together now.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Mundo esquecido

O Louis Armstrong via um mundo maravilhoso, com o céu azul e nuvens brancas. Um mundo com bebês que choravam, e cresciam, e aprendiam muito mais do que jamais se poderia imaginar. Era um mundo maravilhoso, mesmo.

Ele (ele, um cara qualquer, não o Louis Armstrong) também achava isso. Gostava de andar com as mãos nos bolsos nos dias de sol brilhante ou então pela noite escura e abafada. Era vidrado em se vislumbrar com o mundo.

Mas nem sempre foi assim, claro. Antes disso, precisou reformular alguns conceitos e fazer uma autoterapia para se conscientizar de que o mundo poderia mesmo ser bom. Precisou dizer para si mesmo que tudo era belo, maravilhoso, e simples. Simples, isso. Foi simples o que ele fez: se forçou a esquecê-la.

Ah, ela? Ela quem? Não interessava, e mesmo que perguntassem ele jamais saberia. Para ele, ela tinha sido apenas uma criação de sua imaginação. Embora estivessem bem vivas as lembranças de tudo o que havia ocorrido não muito tempo atrás, jurava para si mesmo que talvez tivesse sido... sei lá, um sonho. Nada mais do que isso.

Não falavam que ele tinha uma imaginação fantasiosa? Pois então, tudo isso tinha sido proporcionado pelo mundo maravilhoso em que vivia. Demorou, claro, para colocar isso na cabeça. Mas aos poucos se convenceu de que o sentido da vida era andar por aí sob dias de sol brilhante ou pela noite escura e abafada.

Até que um dia acordou pela manhã, ainda era bem cedo, com uma mensagem no celular. “Oi, querido, quanto tempo! Quero te ver, te contar as novidades e tudo. Vamos sair? Hoje? Beijo, Ela”.

Achou que estava sonhando. Escancarou rapidamente a janela do quarto para ver que era tudo fantasia. Mas se decepcionou quando viu que o céu não estava azul e nem tinha nuvens brancas: estava frio, gélido, com uma neblina que deixava tudo ainda mais feio.

Todo o trabalho de autoterapia foi enviado ralo abaixo quando lavou o rosto após responder à mensagem: “Vamos. Hoje, naquele bar, às quatro”. Esqueceu que o mundo era maravilhoso e apenas se conformou com o fato de que ao mesmo tempo em que fazia um esforço enorme para esquecer, tinha também uma vontade incomensurável para se lembrar de tudo.

domingo, 14 de setembro de 2008

Dançando Ramones

Ele gostava de Ramones. Conheceu por meio de um amigo, quando tinha uns 12 ou 13 anos. E já considerava esse tempo bem longínquo. Ela... ela também gostava de Ramones. Começou a ouvir depois que viu um clipe na MTV. Ela devia ter, sei lá, uns 14 ou 15 anos na época.

Mas não foi por causa da banda de punk-rock que se conheceram (como se conheceram, no entanto, não vem ao caso). Só que foi graças ao Ramones que ambos transformaram em ainda mais intensa uma história que viveram.

Era uma tarde qualquer em um dia de semana quando se encontraram para irem ao cinema. Foram a um em que estava passando Meu nome não é Johnny, já fora de cartaz por um bom tempo por aí – não que o filme tivesse a ver com o quarteto nova-iorquino, mas ela achou que a trama seria legal (ela amava o Johnny Ramone – já ele preferia o esquisitão do Joey).

Quando se encontraram, na porta do cinema, ele gostou da blusinha que ela vestia. Era normalzinha, até, mas com umas letras psicodélicas que diziam “I wanna dance with you”. Ele, depois de alguns minutos, não deixou de perguntar se ela realmente queria dançar com ele. Ela corou, não respondeu nada. Compraram as entradas, entraram na sala... e, claro, não viram o filme.

Papo vai e papo vem, chegou a hora de irem embora. Ele se lembrou de deixar com ela o CD que havia prometido emprestar, o Mondo Bizarro. Ela tirou da bolsa um apenas para compensar, o It’s Alive. “É de um show que eles fizeram em Londres no reveillon de 1977 pra 1978. Foi um dos últimos shows do Tommy, é sensacional”, ela explicou. E ele, claro, ficou extremamente orgulhoso por ter saído com uma garota que soubesse tanto dos Ramones.

“Mas ó, posso te dar uma dica? Ouve algumas vezes só da faixa 19 pra frente”, ela sugeriu. Ele perguntou por que, ela se limitou a dizer “você vai entender”. Ele deu de ombros, abriu a porta do carro (sentia-se um cavalheiro) e colocou o CD para tocar.

Do you wanna dance and hold my hand?, cantou o Joey no mesmo em que ela pousou a mão esquerda sobre a coxa dele. Ele olhou para ela com o canto do olho, sorriu, ligou o carro e subiu a rampa do estacionamento. Ela não gostava muito da faixa seguinte, Chainsaw, mas deixou tocar porque viu que ele sabia a letra de cor.

A música que começou a tocar depois era uma das preferidas dele. Today your love, tomorrow the world. A canção acabou no exato momento em que 1977 virou 1978 em Londres, mas ele nem percebeu. Olhou para ela, sentiu um leve arrepio na espinha e decidiu abrir mão de todo seu jeito foda-se de ser dali pra frente. Assim que I wanna be a good boy começou. Só não pensou em cortar o cabelo de um jeito decente porque gostava do jeito que ela puxava os fios mais longos da nuca vez ou outra. Enfim.

Ele parou o carro na frente da casa dela quando a faixa 24 estava acabando. Ela, antes de sair do carro, perguntou o que ele iria fazer naquela noite. “Sei lá, talvez ficar jogado no sofá de casa esperando o mundo acabar. E você?”. Ela não respondeu. Preferiu a música seguinte, Let’s dance, começar. “Hold me tight, never let me go. “É isso que eu vou fazer essa noite. Não vou te deixar ir embora, simples”.

Ele, atônito, entrou para a casa com ela. E nem teve tempo de ouvir Oh, oh, I love her so.

sábado, 13 de setembro de 2008

Ela, de joelhos

Acho que nunca recebi uma declaração pública de amor, e nem nunca fiz uma. Menos mal. Sei lá, não acho que o mundo inteiro não precisa saber que eu sou um cara bem-resolvido (aham, uh!) e/ou nem que estou perdidamente apaixonado por alguma garota. E também, claro, porque tenho um medo danado de levar um toco em público e ficar com cara de tacho perante uma multidão. No reservado as coisas acabam ficando melhores, em ambos os casos.

Mas até que chegou um dia desses, não sei precisar exatamente a data (que desnaturado!). Lembro que o meio-dia estava bem cinza, pelo menos. Tinha parado para atravessar a avenida a caminho do trabalho e, parando na faixa, olhei para o outro lado da calçada. Ela estava lá, linda. Cabelos castanhos, pele clarinha, roupa social (mulheres lindas ficam ainda mais charmosas com roupa social)....

Acho que ela não me viu parado ali do outro lado da faixa de pedestres, mas eu continuei ali, olhando para ela. Marcando com o joelho direito o ritmo da música que tocava nos ouvidos, tamborilando o indicador esquerdo no bolso no contratempo. Disfarçando, esperando o vermelho virar verde e eu poder atravessar.

Quando os carros pararam, começamos a andar um na direção do outro. Muito, mais muito próximo do nosso encontro, ela... ela se ajoelhou. Caiu de joelhos aos meus pés. Era a primeira vez que uma garota se ajoelhava para mim, e... putz, uma ainda tão linda como aquela!

Todos que atravessavam a rua naquele momento e olharam para a gente. Ela, ali, ajoelhada. E eu, quase corando, com ela aos meus pés. Sem saber o que fazer, tirei o fone do ouvido direito, estendi a mão. Ela segurou, ajudei-a a se levantar.

Poderia ter rolado uma baita declaração de amor e tudo, não fosse ela olhado para o salto alto do sapato logo em seguida e retomar o passo. Não sem antes, é claro, xingar o asfalto da rua e reclamar da vergonha que ela tinha passado por ter caído em pleno cruzamento da Paulista com a Brigadeiro.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

(in)Certeza

Rodoviária aqui perto de casa.

Dia desses, 12h10, bilheteria de uma empresa com guichê marrom.

Um cara, com apenas uma mochila nas costas. Balançava as pernas num ritmo frenético enquanto falava com a bilheteira.

Ele não sabia o que queria, embora... embora ao mesmo tempo soubesse muito bem o que queria.

Segue o papo transcrito e ligeiramente editado.

- Oi, bom dia.
- Bom dia. Quanto tá a passagem pra cidade tal?

- R$ 17.
- Tá. Vê uma pra amanhã de manhã, por favor. Qual horário você tem bem cedinho?

- Meia-noite, serve?
- Humm... um pouco mais tarde?

- 5?
- Tem alguma coisa entre 8, 9 horas?

- Tem às 9.
- Alguma mais cedo?

- 8h45, 8h30, 8h15...
- 8h30, 8h30.

- Posso imprimir?.
- Calmaí. Pra agora, tem alguma?

- Sim, tem. O senhor quer uma pra agora? A partida é às 12h15.
- Quero! Quero!

- Tá, ok...
- Não, espera!

- Pois não.
- 8h30 mesmo, vai. Humpf.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Headache

Noite de sexta-feira, meses atrás. A semana estafante já tinha acabado, a prova sobre o livro parcialmente lido não tinha sido tão cabeluda como eu imaginava e tudo poderia estar perfeitamente bom para mim. Mas não. E eu trocaria aquele momento por uma segunda-feira sem nem pestanejar.

Acontece que naquela noite gélida de sexta-feira eu estava com uma dor de cabeça dos infernos. Estava nervoso, estressado, desiludido, cansado... e pior: com uma puta dor de cabeça. A pior dos últimos anos (não é muito difícil, eu quase nunca tenho dor de cabeça).

Aquela sensação latejante uns três dedos para dentro da minha testa, no lado esquerdo, começou no cair da tarde, quando saí de casa. Tinha saído do banho, colocado algumas coisas na mochila e ido para o metrô. No caminho, começou. Achei que era a música, troquei a banda, depois escolho o modo aleatório... nada.

Então cheguei à plataforma de embarque e aquela gangue de adolescentes de preto e franjinhas pro lado começou a cantar. Olhei feio, precisava de silêncio para sobreviver e chegar vivo na faculdade. Uma das menininhas, bem bonitinha e loirinha, me olhou e deu um sorrisinho. Estava tão de mau-humor que não pude retribuir. Fui sincero, oras.

Estava prestes a surtar quando enfim cheguei ao meu destino. Mas o tempo frio lá fora fez a dor de cabeça aumentar. Assim que entrei na sala da faculdade, tive vontade de me sentar no fundo da sala e me afundei na última cadeira da sala.

A prova começou, e para minha sorte não precisei pensar muito para responder. Comecei a escrever sem pensar (pensar aumentaria minha dor de cabeça). Escrevi, escrevi, escrevi e entreguei. Saí para a Paulista, fui dar uma volta no quarteirão em busca de ar fresco e voltei. A tempo de dividir o elevador com uma garota bonitinha que eu já conhecia de vista há alguns anos, mas meu humor nada agradável piorou tudo.

O tempo passou e chegou a hora de voltar para casa. Voltei conversando com uma amiga (e eu, mais reclamando da vida do que outra coisa) até a baldeação do metrô. Depois entrei em um outro trem lotado, minha cabeça à beira da explosão. Aquele dia era, de longe, o pior do mês. Como é horrível essa história de dor de cabeça.

Finalmente entendi aquilo que eu dizia de que “tal coisa é uma baita dor de cabeça”: significava que tal coisa era tenebrosa, horrível, insuportável e por aí vai. Os dois caras ao meu lado começaram a conversar alto, e um deles disse: “ah, mas entrar naquele site é uma dor de cabeça e tanto”. Quase ensinei pra ele que nada era pior do que uma dor de cabeça.

O quilômetro que separa o metrô da minha casa nunca foi tão distante. Cada passo aumentava a minha dor de cabeça. Demorei tanto pra chegar no meu prédio que já imaginava que faltavam minutos para a meia-noite. Entrei no prédio e vi o relógio marcando 22h40. Uh.

Em casa, minha mãe falou para eu tomar um remédio. Umas 30 gotinhas de um daqueles dois no armário da cozinha. Tinha o Furp-dipirona e o Nevraldor. Pelo nome, fiquei com o segundo. Deveria resolver minha dor – e ainda mais com 41 gotas.

Então passou. E eu nem lembrava mais que minha sexta-feira tinha sido tão ruim.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Tilena

Achava-se um cara de sorte sempre que se lembrava de como a havia conhecido. Foi em um fim de tarde, quando tomava café em algum bar próximo à faculdade e lia um livro. Ela, com um cigarro na mão, olhou para ele e pediu um acendedor. “Como?”. “Acendedor”, repetiu a garota, fazendo um gesto com a mão fechada e dobrando o polegar.

“Isqueiro, você diz?”, ele acabou perguntando. “Sí, izquiero”, corrigiu a garota, tirando alguns fios do cabelo liso e preto da frente dos olhos castanhos. “Olha, eu não fumo”, disse ele. “Mas tenho sim um isqueiro aqui na mochila. Ele... é rosa, meio gay, mas não repara”.

Ele sempre se perguntava por que diabos tinha um isqueiro na mochila. Gostava de dizer para si mesmo que homem que se preza era obrigado a ter um isqueiro à mão. Kit sobrevivência, brincava. Mas conseguiu algo melhor do que isso.

A garota se sentou à mesa e fumou o cigarro. Começaram a conversar, e ela contou que era chilena. Estava em São Paulo há poucas semanas, tinha vindo para fazer um curso com duração de muito tempo. Estava morando numa quitinete ali por perto. Tinha acesso à internet, começaram a trocar e-mails e combinaram de sair mais vezes. O cara de sorte e a tilena (ele adorava o jeito que ela falava ‘Chile’, com o ch com som de tch).

A sorte continuou do lado dele. Ela achou bonitinho o embaraço do cara, que não sabia se a chamava de guapa ou hermosa. “É tudo la misma cosa, chico”. Começaram a sair. E quem diria que ele, que nunca tinha gostado muito de latinas, iria se apaixonar perdidamente por uma tilena. Mas não era difícil: quão graciosa e linda era aquela mulher, um ano mais velha que ele. Que o chamava de chico (leia: tico).

O tal do tico não sabia como lidar muito com ela. Achava que as palavras que dizia não faziam tanto efeito – ela não estava familiarizada, falava castelhano. Também não sabia se tudo aquilo que ela lhe falava tinha o mesmo significado intenso em português.

Mas... e precisava? Ele sabia exatamente tudo que a tilena queria dizer justamente quando ela não falava nada. Quando sorria e mostrava todos os dentes brancos, lindos e alinhados. Quando forçava o corpo dela junto ao dele. Quando apertava forte a mão em seu quadril. Quando suspirava mais forte em seu ouvido.

É claro que o tal do tico sortudo passou a viver em função da tilena. Passou a ir para a faculdade apenas em dias de prova. Dormia quase todos os dias no quarto-cozinha-banheiro dela e até se distanciou um pouco dos amigos. Ele estava feliz, estava vivendo o melhor momento de sua vida. E sabia disso todas as vezes que via sua garota dormindo com os cabelos despenteados jazendo sobre o colo nu.

Um bom tempo se passou. E houve um dia em que a tilena não disse muita coisa. Mas deu o mais belo sorriso, forçou o corpo dele junto ao dela com mais intensidade, apertou ainda mais a mão no quadril dele. Suspirou como nunca.

Só depois, já fumando um cigarro, ela falou: “Tico, na próxima semana eu volto para o Tile. Vou para casa, para siempre. Pero... me voy com su acend, digo, izquiero gay, sí?”.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Vivendo, aprendendo...

Trânsito. Conversa.

- A minha amiga é muito tapada, Fê.
- Qual delas?

- A Carla.
- Ah, a que eu não gosto?

- Quê?
- Ops, nada não. Que tem tela?

- Sabia que ela não sabia pegar táxi e eu tive que ensinar?
- Hahahahaha. Como assim?

- A gente foi pra balada ontem e, na saída, ela fazia sinal pra todos os táxis.
- Hahaha, que mula!

- É, então. Tem 18 anos nas costas e não sabe nada nessa vida.
- Ah, claro! E você, com 17, sabe muita coisa, né?

- Pelo menos eu sei quando o táxi tá livre.
- Mas é tão simples, poxa. É só olhar dentro dele.

- Não, Fê. Eu tô falando da plaquinha de cima do táxi.
- Que tem ela?

- Ué, quando tá acesa é porque tá livre. Quando tá apagada, quer dizer que o táxi tá ocupado...
- Eu achava que ficava acesa porque era de noite...

- Não!! Você não sabia!?
- Humm... eh... ah.

- Não sabia? Hahaha, 20 anos e não sabe nem pegar um táxi.
- Humpf.

- Hahahahahaha
- ¬¬

- Confessa, vai! Fala que você não sabia.
- Humpf.

- Hahahahahahahahahahaha
- Tá, eu não sabia. Já deu, né?

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Papo cabeça

Mal se conheciam, mas tinham visto o mesmo filme instantes atrás. Tinham até sentado lado a lado no cinema, mas não haviam trocado um A sequer durante a projeção.

Saíram da sala sem falarem um com o outro, entraram no mesmo banheiro, utilizaram mictórios distantes (ambos conheciam a lei da zona do respingo), lavaram as mãos em pias vizinhas e saíram quase ao mesmo tempo.

Aqueles caras nem sabiam o nome um do outro – saber até sabiam, mas não se lembravam. Estavam ali apenas porque cada qual havia saído com sua garota, que eram amigas entre si e naquele exato momento também estavam no banheiro (feminino, claro).

Até que um deles achou melhor quebrar o gelo enquanto esperavam. Segue o relato, testemunhado por alguém que passava ali por perto naquele momento.

- Putz, esses secadores de mão são uma merda.
- É, pode crer.

- Você fica lá um puta tempo esfregando uma mão na outra e nada.
- É, ela continua molhada.

- Prefiro o papel, é muito mais eficiente.
- Eu também, mas... não é ecologicamente correto, né?

- Ah, até aí o secador elétrico também não. Gasta energia, que vem da água e tal.
- Verdade.

- Merda por merda, fico com a mais eficiente.
- Mas será que não existe nenhuma solução que não agrida o meio-ambiente e funcione?

- Sim, a camiseta.
- A camiseta?

- Claro: você lava a mão, enxuga na camiseta. Seca até melhor do que o papel.
- Mas... não tem problema de meio-ambiente?

- Sei lá, acho que não. Você já não está usando a camiseta? Então, ela só vai acumular funções. E enquanto isso você economiza energia e poupa as árvores.
- Haha, verdade. E afinal... é água, não vai sujar a roupa. E depois seca...

Até que as duas amigas saíram do banheiro. Cada uma deu um beijo no respectivo parceiro e os dois casais continuaram andando pelo shopping. E os dois caras não se falaram mais.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

The achele

Estava andando um dia desses pela Paulista e acabei lembrando que tinha esquecido de contar um dos episódios mais, ahn, engraçados que eu tive durante minha jornada por Buenos Aires. Vem com certo atraso, mas vem.

Era final da tarde de segunda-feira, eu estava na Avenida Córdoba (uma das mais movimentadas da capital argentina) um dia depois de ter sido assaltado em frente à Casa Rosada. Andei alguns quarteirões de forma vã, e nada de achar a agência do Western Union, onde eu poderia receber enfim alguns trocados que me manteriam vivo na cidade portenha.

Já um pouco de saco cheio de andar sem achar a tal da loja, perguntei para um cara na rua se ele sabia onde poderia ter aquela droga de Western Union. Há menos de 60 horas na Argentina, não tive outra solução que não usar meu español broma-cabrón.

- Hola, señor. Donde yo puedo encontrar una agencia de Western Union?
- Western Union? Bueno, yo creo que sirva te the achele.
- Como?
- The achele, mira? – e apontou para o nada na Córdoba.
- Perdóname, pero... yo no comprendo.
- The achele, chico. Allá, mira?
- Cual!?
- The achele, amarillo y rojo. The achele!

O cara estava se esforçando para me sinalizar alguma coisa, mas eu não entendia. E não fazia sentido, o cara estava misturando inglês e algo que eu imaginei ser espanhol para me mostrar alguma loja. “The achele? Que diabos queria ele me mostrar?”.

- Mira, señor. The achele cual?
- Allá, chico. A la derecha, cambia su lado en la calle, anda dos cuadras… The achele, sí?

Não tinha muita opção e fingi ter entendido. Ok, deve ser alguma coisa ali atravessando a rua, a dois quarteirões... bom, vai saber. Poucos instantes depois, no entanto, percebi o que ele queria me mostrar. Atravessando a rua, vi uma placa da DHL e lembrei de ter aprendido em uma aulinha de inglês que H em espanhol se pronuncia ache.

“Putz, mas é claro! Não é The achele, idiota, mas DHL. De ache ele, e não The achele”.

Meus problemas estavam resolvidos.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Faixa de pedestres

Parou para atravessar a avenida movimentada de sempre, faltavam oito para as duas. Não precisou olhar para os dois lados, os carros zunindo à frente indicavam que não poderia passar. Ergueu o tronco, olhou para a frente. E ela estava lá, do outro lado, querendo atravessar.

Tirou os óculos escuros para vê-la melhor. Não estava do mesmo jeito que antes, de quando a tinha deixado. Estava... estava mais bonita? Parece que sim. Tinha perdido os dois quilos de que ela tanto se queixava. Tinha tirado a tinta do cabelo. Também usava óculos de sol (e como mulheres ficam lindas com óculos de sol!). Mas tinha o mesmo sorriso de sempre.

Então ela estava lá, depois de tanto tempo. Fazia tanto tempo que nem parecia. Não se falavam desde esse muito tempo, que não valia a pena ser medido em horas, dias, semanas ou meses terrestres. Nada da Terra fazia mais sentido uma vez que ela estava... ali, logo à frente.

Era o reencontro mais inesperado que podia esperar, embora o que mais esperava. Claro que fantasiou cruzar com ela novamente um dia, e tinha como principal fantasia um esbarrão naquela avenida. O mundo passa por lá, por que ela também não passaria? E... estava passando... justamente... naquele momento... por ali.

Torceu para o semáforo não mudar. Queria continuar ali, olhando para ela à distância. Até recolocou os óculos escuros para não parecer que estava mirando, observando, visando, admirando... cobiçando, desejando e até secando. Ficou ali o máximo que pôde, ensaiando algumas palavras de efeito. “Oi, você vem sempre aqui?” foi a primeira que pensou. Não conseguia pensar e olhar ao mesmo tempo, duas tarefas extremamente complicadas.

Os minutos que separaram o mudar de cores do semáforo nunca foram tão rápidos e nem tão demorados – prova de que o tempo terrestre não fazia sentido algum. As pessoas ao lado começaram a atravessar. Não sabia se ficava parado, se andava, se saía correndo, se pulava ou se se atirava ao chão. Não sabia nem se chão era com x ou ch. Não disse que pensar e olhar era muito complexo?

Levou um esbarrão e começou a andar, as pernas ainda tremiam. Continuaram tremendo. Os joelhos quase não suportaram a pressão e por pouco não estouraram. O coração, intruso em sua traquéia, também – e bloqueava a respiração. Apenas as mãos não ficaram na iminência de uma explosão. Simples: estavam tão molhadas, não tinham tempo para outra coisa.

Ela se aproximava. Fala, não fala, fala, não fala, fala, não fala... ... ... fala, não fala, fala, não fala... falou. “Hey”. Sorriu, tirou os óculos escuros para ser reconhecido. Ela se virou, fez dos óculos tiara. Não sorriu. Desvirou o pescoço, ajeitou os óculos novamente sobre o delicado nariz e seguiu o passo lento até chegar à outra calçada.

“Não me reconheceu”, pensou. “O cabelo, só pode ser o cabelo. Sabia que devia ter mantido o mesmo penteado”.

Tolo.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Falta

Ela não estava lá na mesa de convidados quando ele se formou. Quando passou de smoking pelo salão para dançar as valsas, até olhou em volta para ver se a encontraria – chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Nada. Ela nem tinha ido à sua colação de grau, alguns dias antes.

Ela não estava por perto quando ele conseguiu o primeiro emprego – seria a primeira pessoa para quem ele contaria. Ele nem pensou em contar a ela, então, quando foi demitido. Ela nem soube que ele tinha saído para procurar emprego.

Ela não estava do outro lado do telefone quando ele voltou para casa em uma noite de terça-feira feliz da vida por que tinha assinado sua primeira notícia e precisava contar a novidade. Normal. Ela não atendeu o telefone quando ele ligou para contar que tinha passado na faculdade, uns meses atrás.

Ela não estava em casa quando aprendeu a dirigir e passou lá naquela rua calma para visitá-la. Ele chegou a buzinar e esperar uns cinco minutos com o carro parado na frente do portão, mas nada. Nem a cortina da janela se mexeu.

Ela não estava lá para recebê-lo às 11h30 de domingo, quando queria apresentar a nova namorada. Não preparou aquele almoço que só ela preparava. Nem sequer deu parabéns pela conquista. Ela não estava lá nem quando o tal namoro terminou e ele precisava desabafar com alguém ou ganhar um abraço apertado.

Ela não estava lá já fazia um bom tempo. Ele sabia disso, mas quase todos os dias achava que... que ela só tinha tirado umas férias. Que um dia, mais cedo ou mais tarde, ela voltaria para casa abrindo o portão e gritando seu apelido, feliz da vida. Que o apertaria em um abraço e daria muitos beijos na bochecha (dos quais ele já tentou se desvencilhar quando mais novo). Que o receberia em uma manhã com um café-com-leite e um pão com manteiga. Ou ao meio-dia, com um arroz com feijão e espinafre.

Ela um dia esteve lá. Ele não entendeu como ela havia aparecido, dizendo que estava morrendo de saudades. Prometeu não desgrudar dela tão cedo. Largaria emprego, compromissos, tudo. Não queria perder um minuto do lado dela.

Mas ela não ficou por muito tempo. Foi embora às seis da manhã, quando o despertador tocou. E ele acordou. E lembrou que ela, a sua avó, tinha morrido há quase dez anos.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Morte lenta

Abriu os olhos de sobressalto, assustado por não conseguir respirar – não pelo nariz. Tinha se esquecido de que já estava resfriado quando pegara no sono e que respirar pela boca lhe deixava aflito.

Demorou alguns breves segundos para perceber que sobre si havia um céu azul enfeitado de um sol forte. E que, por ali, passava uma brisa suave, com um barulho sincronizado com o sacolejar do mar. Mar? Ah, é verdade: tinha ido passar o final de semana na praia.

Pensou inicialmente que havia dormido muito tempo, mas logo depois percebeu que não fora tanto assim: o sol aparecia na mesma posição (não viu as horas porque não gostava de andar com relógio naquela situação, não gostava de ver o tempo passar quando estava com ela).

Era justamente ela que não o deixara voltar ao sono. Embora estivesse de biquíni ao seu lado ainda dormindo calma e tranqüilamente, sua presença o preocupava. E isso acontecia por um simples motivo: o confortava.

E foi olhando para ela que bons minutos se passaram até uma conversa interior lhe dominar.

- É, é ela. Não pode ser mais ninguém; ela é simplesmente perfeita.
- E como!

- O corpo dela é simplesmente perfeito. O rosto... a boca dela... ah, a boca dela. As mãos, o pescoço, os seios, a barriga. Uh, e que coxas! Até os pés – e olha que eu não gosto de pés. E... e até essa cicatriz no braço, putz!
- Pois é, mas... você já percebeu o que pode te acontecer?

- Hum... não. O quê?
- Olha só, tapado: não é perfeito estar aqui com ela?

- É.
- E... e se um dia ela não estiver mais aqui? E se hoje for a última tarde que você passar com ela?

- E por que eu iria pensar nisso?
- Você não ficaria angustiado? Não acharia que o mundo não teria sentido, que nenhuma outra garota seria tão interessante como ela...?

- Mas nenhuma garota é como ela, simples.
- Aí que tá o teu erro. Você parece estar tão envolvido, tão... tão dependente dela. Não seria melhor terminar... sei lá, agora? Melhor do que se envolver mais e mais e, um dia, se vir sozinho.

- Não, não, e...
- Pensa bem.

- ...
- ...

- Ok, verdade. Melhor... melhor terminar. Vai ser pior mesmo se um dia...
- Melhor mesmo.

- Então melhor acordá-la agora, e...
- E aí?

- Não, não rola.
- É, eu sei.

- O corpo dela é simplesmente perfeito. O rosto... a boca dela... ah, a boca dela...
- E as mãos, o pescoço, os seios, a barriga. Uh, e que coxas!

- E a cicatriz no braço, então!

Tentou respirar fundo e não conseguiu. Ainda com o corpo quente, correu para o mar gelado e ficou lá por alguns minutos. A morte lenta por causa de um resfriado mal-curado seria mais aprazível do que imaginar um possível fim.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O (mesmo) cara que fala de amor

Já era tarde da noite (da madrugada, para falar a verdade), mas ele continuava lá, sentado na mesa da sala apenas com o abajur e o computador ligados. Ficou vasculhando antigos arquivos e encontrou uma música da qual pouco se lembrava. Colocou para tocar e saiu na sacada para tomar um pouco de ar.

Essa é a vantagem de morar sozinho: poder ligar o som mesmo depois das três da madrugada e não correr o risco de acordar pai, mãe, avó, irmão ou irmã. A essa hora eles já estavam dormindo em casa, naquela longe e aprazível cidade interiorana. E ele lá, começando a ouvir a música.

Ele nem se lembrava do comecinho bobo da música. Ouviu os primeiros dez segundos da canção, acendeu um cigarro e ficou lá, olhando a cidade apagada. Assim que a música começou a ser cantada ele acabou se lembrando como o arquivo fora parar ali: ela – sim, ela – lhe havia enviado há um tempo.

Ela tinha ouvido aquele som um dia voltando do trabalho e falou que os versinhos fizeram-na lembrar dele. Ele, naquele dia, ouviu a música rapidamente e disse que era bonitinha, apenas para não fazer feio (na verdade, tinha odiado). Só no dia seguinte acabou ouvindo melhor e se apaixonou pela música. E por ela também. Foi depois de ouvir aquela música que ele realmente passou a gostar dela.

O vocal continuou, e ele já não estava se sentindo bem. Começou a suar um pouco. Decidiu voltar para a sala e sentar no sofá. Tossiu forte, quase vomitou no chão da sala – sempre que ficava nervoso quando sozinho, extremamente nervoso e sozinho, seu estômago o repreendia; maldito hábito. Respirou fundo e ouviu o versinho da música. “Ainda assim quero te ver”. Ele, na verdade, não sabia se queria. Não, não, ele não queria. Queria apenas sair daquele mal-estar. E não sabia mais como. Maldita música.

A música acabou depois de três torturantes minutos. Ele levou mais uns três para se recuperar, enxugar o suor da testa com as costas da mão e voltar para o computador. Antes, foi à cozinha para tomar um copo de água e sem querer olhou para o calendário na parede. Naquele dia... naquele dia completavam-se seis meses de que tudo tinha terminado. Já fazia mais de meio ano que aquela música estava lá, estacionada.

Voltou enfim para o computador, pronto para deletar a música para sempre. Antes, resolveu dar o último play. E mais um. E mais um. Passou o restante da madrugada em claro, ouvindo aquela música. E já não se sentia mais sozinho: aquelas lembranças o aqueciam.

Acabou lembrando daqueles versos sendo cantados logo cedo num domingo de manhã, ao pé do ouvido, pela voz dela. Amanheceu e ele ainda estava lá, absorto nas lembranças de um tempo que nunca vai voltar.