domingo, 21 de dezembro de 2014

María Luisa

María Luisa era María Luisa como a segunda esposa de Napoleão. Mas esta María Luisa não falava de marido, não falava de filhos, não falava de parentes.

María Luisa era mulher independente, que colocava uma mochila nas costas e saía a conhecer o mundo — até aonde o dinheiro lhe permitisse chegar. María Luisa viajava sozinha, porque já carregava coisas demais: não queria carregar gente e nem ser carregada por aí.

María Luisa uma vez viajou à Europa. Era 1998, a crise ainda não havia assolado seu país. Com bastante dinheiro na bolsa, María Luisa conheceu a Espanha, a França e a Itália. Odiou os franceses, adorou os italianos.

María Luisa gosta da língua italiana. Entende tudo, mas talvez não fale tão bem assim. María Luisa bate no pulso orgulhosa e diz que ali corre sangue italiano. María Luisa é neta de italianos, mas nasceu na Argentina. “Só que não sei, sabe? É diferente. O sangue… o sangue que corre aqui é italiano”.

María Luisa não fala inglês. Uma vez, viajando entre a Cordilheira dos Andes, a guia da excursão da María Luisa avistou um condor sobrevoando a van do passeio. María Luisa não pensou duas vezes: atirou-se com tudo sobre um casal de canadenses de meia-idade e, com um sorriso enorme, grudou o rosto na janela que não era a sua.

Foi assim que conheci a María Luisa.

María Luisa, sem graça e arrependida depois que o condor voltou para o topo da montanha, queria se desculpar com os canadenses e me pediu ajuda. Traduzi as desculpas, os perdões e as apologizes da María Luisa, que foi absolvida pelos canadenses — como não seria?

María Luisa também ficou hipnotizada com os lagos no meio dos Andes e quase atrasou a excursão, porque não queria voltar para a van. María Luisa não se importava com o vento forte e gelado batendo com força contra seu rosto. “Isso aqui é incrível”. Era mesmo.

Quis o destino (destino?) que María Luisa e eu nos sentássemos à mesma mesa para almoçar naquela tarde, mais tarde, depois de condor, canadenses, lagos… Era a única mesa com lugares vagos para meu irmão e eu naquela excursão — e digo isso com propriedade, pois farejamos por alguns minutos em busca de uma mesa isolada.

Mas María Luisa não queria dividir a mesa conosco. Sentia-se muito velha para almoçar com dois jovens brasileiros e mais dois austríacos que também não deviam ter mais que 25 anos. “Por que vocês vão querer almoçar com uma velha como eu? Não, vou me sentar em outro lugar”. Foi difícil convencer a María Luisa a ficar. “Como não vamos querer? Você é a única argentina da mesa, tem muito o que nos contar sobre tudo isso aqui”.

María Luisa sorriu e puxou a cadeira para se sentar. Sentou-se, pediu um vinho e não parou mais de falar.

María Luisa, ao final do almoço, também não parou de nos agradecer por não termos deixado que ela se sentasse sozinha. Disse que não éramos jovens comuns, como aqueles que “passariam o almoço se burlando de uma velha com seus 70 y pico de años”.

María Luisa não desceu do shuttle na mesma parada que nós mas ficou na janelinha (na sua, não na do casal canadense) nos dando tchau, sorridente, rosto grudado no vidro, como se tivesse acabado de ver um condor voando ali pertinho dela.



Para não me esquecer nunca mais da María Luisa, passei na primeira lojinha de souvenires e comprei um condor de madeira para enfeitar minha sala. 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Nós

Foi um domingo e tanto para alguém como eu, uma pessoa que odeia domingos.

Foi um domingo e tanto para alguém como eu, uma pessoa que odeia domingos, se lembrar para sempre de como um dia perfeito deve ser.

Você e eu, no meu carro, sem saber para onde ir. Eu dirigia, seguia as instruções que você me passava enquanto olhava no mapa e intuía quando você estava entretida com a nossa conversa, com a paisagem, com o sol, com os prédios, com as árvores, comigo... e se esquecia de me falar para dobrar nesta ou naquela esquerda.

E agora, pensando friamente, não consigo me perdoar por não me deixar perder com você. Estaríamos dirigindo até hoje, até agora, sem rumo à procura de casa, sem nunca chegar por nunca sabermos o que seria a nossa casa.

Pararíamos na beira da estrada, compraríamos cartões postais e enviaríamos às pessoas próximas para avisar o mínimo: estaríamos bem.

Estaríamos bem deixando para trás quilômetros e mais quilômetros de lembranças que nunca esqueceríamos.

Nos divertiríamos com pouco. Com nada. Com o outro. Conosco.

Deitados chão, com os pés na grama, respirando o ar úmido do final da tarde.

Foi um domingo que nunca deveria ter existido.

Foi um domingo que nunca existiu fora da minha imaginação enquanto ouvia Two of us, vidros fechados, gritando cada verso parado no semáforo.