terça-feira, 21 de abril de 2015

A materialização da música

Demorei alguns anos para me deixar impressionar pela figura do maestro. E foi só quando passei a ignorá-lo completamente que algum dia, sem querer, emprestei um pouco da minha rara atenção a uma figura que se movimentava e se contorcia e fazia uma coreografia esquisita dentro de um compasso perfeito diante de uma orquestra.

Mas aquele não era um maestro, rabiscando o ar de uma maneira qualquer enquanto os músicos tamborilavam os dedos sobre as cordas nos braços de seus instrumentos olhando para as partituras nas estantes à frente. Aquele ser não era, naquele instante, um humano que regia outras dezenas de humanos. Aquele ser era a música. A música, que havia deixado de ser apenas ondas vibratórias para se apropriar daquele conjunto de ossos e músculos cobertos por uma camisa preta.

A música, cadenciada, completa, se utilizava do corpo daquele homem para bailar a si mesma. E bailava, e flutuava, e passeava pela sala ao longo dos braços daquele pobre instrumento humano. Não se doía dos demais, dispersos, desrespeitosos diabos que se deixavam devanear durante aquela rara exibição da perfeição. A música se desfrutava, se retroalimentava.

Até o momento em que, intencionalmente, se fez notar por todos novamente. Rasgou o ar com força em um movimento brusco, com um som que, por instantes, prendeu a respiração daquela plateia de pecadores. Hipnotizou-a. E, em seguida, colocou-a em contato com suas emoções mais íntimas.

A menina criança desabraçou o pai e começou a tocar sozinha um violino invisível que acabara de sacar do colo.

O homem que tirava fotos com o celular baixou os braços e pousou o aparelho sobre a perna.

O jovem desenhista pousou a ponta do lápis sobre a folha de papel, respirou fundo e passou a rabiscar sua obra no mesmo compasso da sinfonia.

O brutamonte apertou com força os olhos com as pontas dos dedos e dissimulou um bocejo.

A garotinha que estava incomodada por perder o assento se apoiou feliz no corpo do tio.

A mulher da primeira fila que havia improvisado um banco perto dos músicos endireitou a coluna, tirou o cabelo do rosto, chorou e sorriu, secou o rosto, fechou os olhos, chorou e sorriu e sorriu mais do que chorou.

E eu juro que queria ter visto mais reações se minha visão não tivesse ficado tão embaçada quando um volume absurdo de lágrimas tomou conta dos meus olhos em questão de segundos.

Era um desperdício observar os outros quando eu poderia ver a música.

sábado, 4 de abril de 2015

E se um dia nos víssemos?

E se um dia o destino desafiasse a mais certa improbabilidade e te colocasse à minha frente?

Uma vez me fizeram essa pergunta, e quase engasguei com o refrigerante quando recusaram minha primeira — e evasiva — resposta. “Magina, isso não vai acontecer”.

E se um dia nos víssemos?



E se um dia nos víssemos?

Recorri aos meus sonhos para tentar identificar algum padrão de comportamento que eu pudesse apresentar quando te visse.

Não encontrei.

Nem nos meus sonhos nos encontramos.

Meus sonhos gostam de me colocar na tua casa, no teu jardim, na tua sala, mesa do jantar com a tua família, no teu quarto. Mas nunca nos encontramos.

Lembro apenas que meu peito acelerava e minhas mãos transpiravam quando se acercava a hora de te ver nos meus sonhos. Mas eu sempre era resgatado de lá momentos antes de você chegar.

Ver você já não faz mais parte dos meus sonhos.
(Ou será que meu subconsciente sabe de algo e não quer estragar a surpresa?)

Mas…

E se um dia nos víssemos?

sexta-feira, 27 de março de 2015

Helter Skelter

Muitas vezes me reprimiam quando eu franzia a testa, apertava o botão para mudar de faixa e dizia não suportar Helter Skelter. Sempre ignorei o fato de “ser um clássico, conviva com isso” e batia o pé com meu melhor argumento: “é uma barulheira sem o menor sentido”.

Assim foi até 26 (ou já 27) de novembro de 2014, quando eu estava vendo o segundo show seguido do Paul McCartney em dois dias seguidos. Era tarde, muita gente já tinha ido embora sem ligar que a apresentação ainda não havia terminado.

Eu olhava com um pouco de dó para aqueles que simplesmente se levantavam de seus lugares, esticavam as pernas e se dirigiam à saída do estádio. É, era uma sensação de dó, algo como “cara, mas ainda não acabou, fica aí por favor que você vai gostar!”. Só não senti isso de um casal de velhinhos, que estavam próximos a mim e que também se levantaram e começaram a ir embora ao final de Yesterday.

E aí o Paul começou a tocar Helter Skelter. Sem falar nada, apenas consentindo com todas as pistas não-verbais de que dispunham, ambos se detiveram naquele mesmo lugar onde estavam quando o primeiro acorde de Mi soou. E começaram a chacoalhar os corpos e a balançar as cabeças de cabelos brancos.

When I get to the bottom I go back to the top of the slide, where I stop and I turn and I go for a ride ‘till I get to the bottom and I see you agaaaaaaaain yeah yeah yeah.

Não vi o Paul tocar Helter Skelter aquela noite. Parei e dediquei toda minha atenção à dança do casal de velhinhos. E eu, que já havia chorado de todas as formas possíveis durante o show daquela noite, abri a comporta para o volume morto de lágrimas que me restavam.

“Aprende com a experiência”, me falaram certa vez que contei essa história.

Acho que aprendi.

Hoje, alguns meses depois disso, ouço Helter Skelter e me arrepio. A música acabou se tornando uma das minhas (dezenas) favoritas da minha banda preferida.

Ainda é uma barulheira, eu sei. Mas com o maior sentido.


quinta-feira, 26 de março de 2015

Não sei.

Sei que não sei. Não faço a menor ideia, não tenho nem noção, não me passa pela cabeça, não penso nisso.

Não sei.

Eu não sei. E por não saber nunca me senti tão pleno. Nunca tive tanta vontade de inspirar e sorrir sozinho após encher os pulmões.

Nunca me inspirei tanto. Porque não sei.

Não sei. E nunca me senti tão vivo.

Não sei, logo existo.

Não sei. E por isso grito e irrito minha garganta cantando Something sozinho no carro.

Grito que não sei. E sorrio. E sou feliz.

quarta-feira, 25 de março de 2015

O fim

Eu tinha a certeza de que você estaria nos meus sonhos naquela noite.

Era muita intensidade, era muita euforia, era muita alegria, era muita inconsequência… era muita, mas muita felicidade. Felicidade vazia. Sem fundamento. Era uma felicidade que não duraria, e eu sabia.

Sabia, mas ignorava. Ignorava porque preferia bater com força e com as mãos espalmadas sobre o volante do carro, seguindo o ritmo daquela levada agitada, em volume exagerado, que me ajudava a ficar acordado no caminho de casa às 2 da manhã de um dia comum.

Em algum momento, porém, alguma coisa avisou dentro de mim que aquela empolgação estava próxima do fim. Aquela empolgação era o fim. E, a partir do momento em que eu começasse a sonhar com você naquela noite, você deixaria a minha vida real para entrar apenas no meu imaginário.



?



Seria o fim.

Foi o fim.

E eu prometi que não me abalaria.

Porque, no final das contas, tudo volta.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Não vou te responder

Vou receber tua mensagem e não vou te responder. Vou lê-la, vou tentar entender o que você quis dizer, vou ouvir tua voz entrando pelos meus ouvidos e descendo até o coração, vou sentir teu olhar penetrando os meus olhos, mas vou respirar fundo e aspirar o teu perfume e não vou te responder.

Vou reler a mensagem e tentar destrinchar cada palavra, cada letra, cada vírgula, cada espaço para tentar entender todas as dimensões daquilo que você quis me dizer.

Vou pensar em todas as possibilidades — e vou inventar mais algumas.

Vou imaginar as consequências de cada uma em mundos paralelos que tiveram início a partir do momento em que eu bati os olhos sobre a tua mensagem.

Vou bloquear a tela do meu telefone e não vou te responder. E então vou desbloqueá-la para lê-la de novo e pensar no que vou te responder. Não agora, mas daqui a 5 ou 10 minutos. Ou 15. 15. 15 é melhor. Mas claro que vou te responder. Quem disse que não iria?

Vou apenas fazer um charme, fingir (para quem?) que não vou te responder e no final eu sempre acabo te respondendo — afinal, não teria sentido puxar uma conversa com você após tanto tempo para simplesmente não te responder mais.

Vou deitar o celular sobre a mesa e esfregar as pontas dos dedos sobre as palmas das mãos — e eles vão deslizar sobre uma fina camada de suor. Vou agarrar minha camiseta pelo colarinho para secar o suor. Vou respirar fundo novamente para recobrar o controle da situação e…

E, enquanto eu inspirava, tua mensagem chegou. E mal terminei de expirar, já havia te respondido.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Oi.

Você sabe como não gosto de começar nenhuma conversa com um oi, assim seco, seguido de um ponto final. Me sinto mal. É seco demais, é frio demais. É seguido de um ponto. É um oi que termina logo em seguida.

Oi.

É um oi que poderia ser tchau. É um ou que deveria ser tchau. Que quer ser tchau.

Gosto de começar uma conversa com um oi seguido de um ponto de exclamação e um sorriso, que mostrem, de alguma forma, como gosto de começar uma conversa com você.

Oi! :)

E sempre que te escrevo esse oi, com exclamação e carinha feliz, não pergunto se está tudo bem. Você sabe que eu não gosto de perguntar se está tudo bem, ou se está tudo bom.

Quero tanto que tudo esteja sempre bom com você que me doeria saber, logo de cara, que não está tudo bom e você não me contou antes, na mesma hora que aconteceu, sem precisar falar oi e sem nem perguntar se eu estava bem.

Desta vez eu também não quero perguntar se está tudo bem, porque não quero te responder se está tudo bem ou não.

Não está.

Te escrevi esse oi, coloquei um ponto final depois dele e meu coração disparou. Precisei esfregar as palmas das mãos na calça para enxugá-las. Precisei respirar fundo e engolir de volta meu coração.

Te escrevi oi e depois te escrevi tudo isso na tentativa de adiar a nossa despedida.

Vou sentir saudade.