Acordei hoje na hora do almoço, abri a janela, dei uma volta pela casa e parei na frente do calendário pra ver que dia era hoje. Senti uma coisa estranha quando vi que era dia 30 de novembro. Não é um dia que passa batido pra mim; é como se fosse um dia marcante e tal. Parei pra fazer aquele brain teaser de toda a minha vida pra ver se tinha algum motivo especial pra essa coisa em cima de hoje.
Lembrei rápido, nem precisei voltar aos primórdios da minha infância. Lembrei que sete anos atrás, exatamente em 30 de novembro de 1999, eu dormi no sofá. Não queria ter dormido, tinha tentado virar a noite. Tentado, porque não consegui passar da oitava partida de buraco com o meu pai: deu três da manhã e eu tava já com bastante sono. Dormi no sofá e o despertador cacarejou no meu ouvido às seis da manhã. Acordei na hora, não queria perder um minuto sequer da expectativa daquele dia. Todos os telejornais globais mostravam os bastidores de tudo, e eu via nervoso, esperando o relógio passar rápido até às oito horas.
Marcos; Arce, Júnior Baiano, Roque Júnior e Júnior; Galeano, César Sampaio, Alex e Zinho; Paulo Nunes e Asprilla. Asprilla? Eu até gostava dele, era um jogador de nome, de renome europeu e de estilo engraçado. Mas não gostei de ver o cara escalado pro jogo mais importante da minha vida, eu queria era ver o Evair em campo. Mas tudo bem, se o Felipão quis assim, amém.
Era o jogo mais importante da minha vida, como eu disse. E meu coração bateu pesado quando o imbecil do Giggs cruzou na área, o Marcos deu tchau e a bola sobrou pro idiota do Roy Keane. Meu coração bateu mais pesado ainda quando o Oséas perdeu um gol feito na cara do Bosnich - que, porra, nunca pegou nada na vida. Só naquele jogo, nunca mais. Quando o juiz terminou o jogo, eu não consegui fazer muita coisa. Com um olhar meio perdido, fui para o meu quarto, deitei na minha cama e fiquei pensando, e pensando, e pensando. Não chorei, como quase todo mundo o fez.
Chorei mais tarde, quando minha mãe ligou. A primeira coisa que ela perguntou foi "E o Palmeiras, hein?". Não tinha muito o que falar, então só falei "Eh...". Depois ela disse que a minha avó tinha piorado no hospital. Tinha ido pra UTI e tava respirando com a ajuda de aparelhos. "Mas vai ficar tudo bem, eu prometo. É só pra não forçar nada". Disse "aham" e desliguei o telefone. Chorei, chorei bastante. Sempre que aparecia na tevê alguma notícia de pessoas respirando por aparelhos, minha mãe falava "Quando é assim, não tem mais nada pra fazer. A pessoa já morreu". Minha mãe é médica e nunca se enganou quanto a isso. Então eu não me enganei sobre a minha avó.
Alguns dias depois - no dia 4 de dezembro, outro dia em que sempre acontece alguma coisa -, ela morreu. Chorei menos do que tinha chorado no dia 30. Sei lá, acho que eu já tava esperando isso acontecer. Não tinha muitas esperanças.
Minha avó sempre dizia que não ia ver eu me formar. Ela tinha só 69 anos e tinha a melhor saúde que uma velhinha de 69 anos podia ter [Pra falar a verdade, quando ela fez 69 anos, eu senti algo esquisito. Meu avô também morreu com 69 anos. Sei lá, depois disso eu comecei a achar que as pessoas não tinham o direito de viver até 70 anos. Pelo menos na minha família]. Ela sempre dizia que não ia ver eu me formar no colegial. Não viu.
Ela também não viu eu entrar na faculdade. Não viu eu conseguir um emprego. E não vai ver eu começar no meu emprego amanhã.
Como meus pais tinham acabado de se separar, a minha avó era a única pessoa que fazia parte da transição da minha vida dos 10 para os 11 anos. Sem ela, sei lá, talvez eu não teria feito muitas coisas.
E a gente nem pôde se despedir.
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