quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Não, não morreu

Eu tava voltando hoje pra minha casa. Tava meio cansado porque fiz bastantes caminhadas pela zona sul da cidade, e ainda o calor tava delicadamente insuportável - não que isso seja uma reclamação, mas o fato é que tava assim mesmo. Sentei na primeira cadeira que eu vi vaga no vagão do metrô, abri a mochila e peguei o livro que a Tortura Inglesa me manda ler [até que não é de todo ruim também, apesar de a história só ter melhorado depois que eu vi o filme pra trapacear].
Dentre uma olhada e outra pra todo mundo, preferia desfrutar todo o poder que os fones de ouvido do meu MP3 não têm. Só levantei a cabeça do livro uma hora, quando eu virei a página do livro. Olhei para a frente, para a esquerda... e quando olhei pra direita, vi que um cara que tinha tentado se levantar tava ajoelhado. "Coitado, olha o cara lá. O que tá cuidando dele. O cara deve ter, sei lá, algum problema sério". Foi o que eu pensei, e continuei olhando só por força do hábito.
O cara ajoelhado fez uma força pra se levantar e tombou pro lado. Vendo a cena em câmera lenta - como sempre acontece comigo quando é alguma coisa que vai ficar pra sempre na minha memória -, previ que o cara ia tombar e ia fazer o maior barulho. Feito. Ele caiu bem na minha frente, e o baque da cabeça dele com o chão foi uma das coisas mais surdas e secas que eu já vi.
Ele tombou. Tombou na minha frente e em slow motion. Olhei pra ver o estrago feito e o cara tava lá, de olhos abertos, olhando no fundo dos meus olhos. Bem lá no fundo, embora ele não estivesse nem perto de onde eu estava. Sei lá, aquele clichê bem besta de que o corpo tava e ele não. Mas, sei lá, o olhar dele ia muito mais além da estação São Judas e Conceição.
Todo mundo levantou desesperado e pedindo ajuda. Eu tava mais travado do que sei lá o quê, olhava pro cara, ele olhava pra mim e eu não sabia o que fazer. Ele não tinha morrido, eu achava. Todo mundo começou a sacodi-lo, a tentar abrir a boca dele. "Não deixa ele dobrar a língua, não deixa!". Na hora, lembrei das aulas do CFC. Quer dizer, lembrei das aulas e em seguinda eu lembrei que tinha esquecido. "Na convulsão, tem que segurar a língua? Não, né, acho que só tem que segurar a cabeça porque ele vai ter vários espasmos e... caralho, ele vai ter vários espasmos. Eu vou apanhar!", pensei.
Saí de perto pra deixar pessoas mais treinadas - munidas de uma caneta Bic e várias mãos sem muita utilidade - tomarem conta do caso. Eu ia, sei lá, procurar algum daqueles negócios pra socar e chamar o maquinista. Não achei - não no meu campo de visão. Quando olhei de novo pra cena, o simpatia tinha retomado a consciência e se levantava. Disse que tava tudo bem, tinha só passado mal quando se levantou, que não precisava de ar nem nada, ele ia descer no Jabaquara e, enfim, tava bem. Só queria a bolsa, que um rapaz lhe entregou logo em seguida.
Quando o trem parou na Conceição, quatro funcionários desesperados entraram no vagão à procura da pessoa. Por mais que ele falasse que tava bem, todo mundo mandou ele sair pra tomar um ar. Todo mundo mesmo, todo o vagão olhava pro cara, que, sei lá, devia estar morrendo de vergonha. Acabou que ele saiu e eu voltei pra casa ouvindo os comentários de todo mundo que não tem mais o que fazer, o que cada um achou quando ouviu ou viu tal coisa, essas besteiras.
O que mais me tocou, sei lá, foi essa coisa de um olhar seco. Na hora, lembrei - muito antes de lembrar das aulas do CFC - da linda garota loira com quem eu trocava os olhares mais sinceros do mundo no ano passado. Mesmo que a garota e o rapaz sejam [extremamente] diferentes [ainda bem!], a situação fez eu pensar. O olhar dele era, como eu já disse, a coisa mais fria e inexistente que existiu. Diferentemente da garota. A felicidade que ela me passava, e a insegurança que eu deixava transparecer. O dela era um olhar quente, confortante e cheio de tudo aquilo que eu queria dela e que não tive. Eu era muito inseguro, ela me contou um dia. Até hoje, espero me encontrar com ela na saída do metrô e aí a gente poderia conversar tudo o que ainda não deu tempo pra conversar. E ela poderia ver que eu ainda estou por aqui, bem como todo o brilho do meu olhar pra ela. Também não morreu.
"Se você tivesse tentado antes", ela disse, "a gente estaria bem feliz agora. Mas eu tô um moleque agora, não dá".

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