quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Samad

Faz quase um ano, viajei a trabalho para o Marrocos. Estava sozinho e morrendo de medo. Muito mesmo. Por precaução, pedi que o hotel enviasse um taxista para me buscar no aeroporto. Desembarquei e logo vi uma plaquinha com meu nome. Quem segurava era um homem de uns 40 anos, meio bonachão, calvo, barrigudo e com um bigode super bem cuidado. Lembrava um pouco o Senhor Cabeça de Batata. Vestia até uma túnica cor de saco de batata. Chamava Samad — “O Eterno”, segundo o islamismo.

Samad não entendia meu inglês. Também não falava espanhol e nem português. Só darija (árabe marroquino) e francês. E eu não falo nenhum dos dois. Não poderíamos conversar, mas conversamos. No táxi, ele embolava um inglês com francês para me contar sobre Marrakech e prestava atenção para ouvir minhas respostas. Quase nunca entendia, mas fazia de conta que sim. Teríamos um problema.

Meu hotel ficava uns 12 km para dentro do deserto do Saara, e o Samad era o único taxista que trabalhava lá perto. Só não fornecia recibos, que eram importantíssimos para a minha prestação de contas. Eu teria um problema. Mas meu medo do Marrocos era maior do que meu medo de perder dinheiro. Então, no primeiro dia, solicitei o táxi no hotel e lá estava o Samad me esperando, pontualmente, sorrisão no rosto, careca brilhante, bigode alinhado e porta do passageiro do seu Mercedes anos 80 aberta para mim.

Samad não tinha taxímetro, o preço era sempre tabelado. “Hotel to Stadium, 100 dirhams. Stadium to hotel, one hundred. Hotel to Medina (centro) or Medina to hotel… one hundred. Hotel to airport, no. Two. Two hundred”. Era caro, mas era o que estava disponível. Ele me levava para os lugares, contava alguma curiosidade do local e ficava lá, me esperando. Não pegava nenhum outro passageiro. Me levava onde eu quisesse, no horário que eu quisesse. “Just call me half hour before. Half hour”.

Samad não era de Marrakech. Nasceu em Agadir, mas havia se mudado ainda menino para a região periférica de Marrakech. Vivia em uma vila, no meio do deserto. Todos os vizinhos da vila eram da sua família. “Marrakech, my city”, ele dizia, apontando para o chão quando conversávamos sobre o assunto.

Ah, estávamos conversando! Parei de usar phrasal verbs, past perfect e abandonei toda a frescura do inglês que a gente aprende nos livros. Decidi falar inglês errado, cheio de sotaque, marcando os Ts e os Ds, forçando o R. Às vezes, até misturava uma palavra ou outra de francês que eu estava aprendendo. “Felipe, your English… much better! Now I understand. Before no”. Eu também entendia o Samad, mesmo quando ele conversava em darija na rua. E ele também me entendeu. “Felipe, I talk hotel. Hotel will give receipt for taxi”.

Samad estava aprendendo inglês, fazia aulas com uma professora árabe que ensina pelo YouTube. Quando tinha tempo, pegava o celular, via um vídeo e repetia o que ela falava. “My teacher. Very good”, dizia, sorrindo e fazendo sinal de positivo com a mão direita.

Samad me levou para cima e para baixo de Marrakech. De manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Nunca reclamava quando eu passava, na noite anterior, o roteiro do dia seguinte, cheio de idas e vindas e mais idas e mais vindas e vários destinos. “No problem. Just call me half hour before. Half hour”. Depois de uns dias, eu mesmo já falava: “Ok, half hour before. Half hour”.

Só uma vez o Samad precisou mudar o itinerário: era uma sexta-feira, na hora em que a cidade parava para a oração coletiva. Pediu desculpas e perguntou se podia me buscar antes. “A hora que você precisar. No problem. Just call me half hour before. Half hour”, falei. Ele morreu de rir. E me agradeceu muito.

Depois de duas semanas, quando eu precisei ir embora (e morrendo de tristeza), comprei um presente para o Samad: um chaveiro do torneio de futebol que eu estava cobrindo. Achava que ele guardaria em algum lugar na casa dele. Mas na hora ele pegou o chaveiro e pendurou no espelho do Mercedes. “Here. Always with me”. Meu olho inundou. Engoli seco.

Na minha última noite no Marrocos, de folga, tinha ido passear pelo centro. O Samad, que havia fumado um pouco de haxixe naquela tarde, parou o carro no meio do deserto no caminho de volta para o hotel. Pegou uma caneta permanente que tinha no porta-luvas, tirou o chaveiro do espelho e deu na minha mão. “Write here. Your name, now”. Não entendi, mas escrevi sobre o verso do chaveiro. “Felipe Held – Brazil – Dec/2013”. Devolvi. Ele pendurou de novo o chaveiro no espelho. Com meu nome virado para ele. “Much better now. Always here. I look and I remember. You are very good person. My friend”.

Chorei. De soluçar.

Como agora.

Foi uma sensação horrível quando o Samad, no dia seguinte, me deixou no aeroporto de Marrakech. O chaveiro pendurado tilintava nas costas do espelho e quebrava o silêncio na cabine do táxi. Quando saí do carro, ele pegou minha mala e nos abraçamos. Tentei não chorar. O Samad não tentou. E eu parei de tentar também.

Então ele entrou no carro, eu fiz sinal e ele abriu o vidro.

“Samad! Você me busca amanhã? Em casa, no Brasil. Eu te ligo! Half hour before. Half hour”.

A despedida foi melhor com os dois gargalhando.

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