sábado, 1 de novembro de 2014

Os pés do pianista

Era um dos exemplos mais escancarados daquele clichê: os dedos se confundiam com teclas, os braços eram a extensão daquele enorme corpo de madeira impecavelmente envernizada – que, por sua vez, era também um grande prolongamento das mangas daquele paletó. Em síntese: piano e pianista eram uma coisa só naquela noite.

A simbiose entre ambos era uma coisa impressionante, evidente a cada sustenido cirurgicamente implantado para cada colcheia. A melodia produzida por aquelas teclas era o que mais perto se pôde chegar da perfeição naquela noite. Era o aguardado reencontro entre criador e criatura. O pianista e sua composição.

De olhos fechados, o pianista deslizava delicadamente os dedos pelas teclas enquanto tinha a cabeça inclinada para o teto. A respiração constante e o sorriso de meia boca tatuado no rosto indicavam que o artista estava prestes a entrar um estágio interessantíssimo de transe.

A tranquilidade era assustadora.

A tranquilidade era falsa.

Os pés denunciavam o enorme conflito enfrentado pelo pianista durante aquele longo solo. Agitados, sapateavam sobre o palco. Esporavam o vazio, sambavam um blues boogie-woogie intercalando-o com passos de jazz e chocavam-se pelos calcanhares como um personagem de desenho animado.

Os sapatos impecavelmente engraxados afundavam-se nos pedais do piano, como se quisessem dar-lhe a partida e erguê-lo do tablado. Ao mesmo tempo, ditavam o ritmo daquela e de várias músicas que passavam pela cabeça daquele gênio claramente perturbado.

Era aquela atitude tresvariada daquele ser que não sabia estar em transe ou em surto que garantia à performance um status encantador. Porque a perfeição... a perfeição não está nos extremos, mas nos incontáveis intervalos entre eles.

Mas não sou eu quem o diz. E sim o jovem músico que havia repousado o violino sobre o colo e, hipnotizado, não se atrevia sequer a respirar para não perder um milissegundo daquela explosão de genialidade do renomado pianista. Acompanhando-o com o olhar fixo e brilhante de uma criança que vê algo fantástico. Com um sorriso de uma pessoa apaixonada que acaba de receber uma resposta positiva para um jantar. E tentando reproduzir com os pés os movimentos do ídolo com quem dividia o palco.

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