terça-feira, 28 de maio de 2013

Fantasia de uma independência *

Era um outono que ainda não havia se estabelecido quando deitaram juntos naquela noite e se despediram com os mesmos rituais de outrora.

Ele se virou de lado, respirou fundo algumas poucas vezes e caiu adormecido com o mesmo impacto de uma âncora de um cargueiro recém-aportado. Nem sequer a percebeu inquieta ao seu lado, piscando com os olhos fechados e respirando de uma maneira acelerada, dissimulando um sono que nunca existiu.

Esperou ele dar o terceiro espasmo com o ombro direito, aprofundar a respiração, entreabrir as pálpebras e explorar o primeiro estágio de REM quando se descobriu, caminhou na ponta dos pequenos e caprichosos pés, com o zelo de não fazer o menor ruído possível e de não chocar as unhas mal pintadas contra o ruidoso e já um tanto desencaixado piso de madeira do cômodo. Despediu-se com uma mirada baixa para trás e um suspiro decidido.

Ela sabia que precisava escapar do coche naquela passarela estreita e escura enquanto ele não enveredasse para a longa e entediante estrada daquele vale deserto para onde se encaminhavam. Saltou e fugiu, sem pensar e nem pesar, para longe da culpa que ficava para trás. Ele sobreviveria: já havia passado por isso e conhecia todos os passos da vergonha derrotada que teria ao despertar.

Em algum momento ela imaginou padecer de remorso, mas rapidamente travestiu aquele sentimento em uma mescla de força e esperança. Seguiu o caminho do vento, que balbuciava a primeira sílaba do seu nome e a inebriava com aquele perfume novo de vida.

Enquanto isso ele se virou de maneira repentina na cama. Buscou-a com o braço estendido para envolvê-la em um abraço quando não a encontrou e abriu os olhos atordoado. Apalpou as dobras do cobertor e acordou sobressaltado.

Escancarou a janela do quarto e, ainda que com os mesmos olhos ofuscados do prisioneiro que acaba de deixar a caverna e se depara com a luz da verdade, enxergou um mundo de ponta-cabeça (ou finalmente em sua posição normal?). Gritou por ela, esvaziou os pulmões de tanto berrar seu nome.

Esteve paralisado pelo vento gélido que explodia contra seu peito até encontrar o bilhete que ela havia deixado sobre a cabeceira, declarando sua independência no verso do recibo de uma passagem de trem. “Sou livre agora. Fui viver minha vida como ela deve ser”.

* Devaneios sobre versos de um grito de independência

Nenhum comentário: