terça-feira, 30 de novembro de 2010

Dor

Um feliz episódio ocorrido dez anos atrás poderia dominar as primeiras linhas deste relato. Também seria possível começar o que se segue citando um certo relaxo e até certo ponto descaso de minha parte nesses últimos dez anos. Mas não sei. Prefiro começar com o que aconteceu nos últimos dias.

É difícil ver um ente querido enfermo – daria até para arriscar dizer que sinto tanto quanto ele, em determinadas maneiras. Sou mais molengão, confesso, enquanto ele se faz de durão. Sempre se mostrou incômodo com a minha presença, sempre me repeliu apesar de demonstrar bastante disposição em ter uma relação mais próxima.

Até por isso me afastei – de tal forma que são poucas as pessoas que sabem que mantenho esse relacionamento, e todas elas se surpreendiam enquanto eu lhes contava. Nesta década, praticamente vivemos nossas vidas de uma maneira independente. Mas sempre há um episódio que mostra o quanto de afeto há neste convívio. E, infelizmente, acabei percebendo apenas de uma maneira desagradável.

Tenho que cuidar-lhe, e isso é extremamente doloroso para mim – e posso apostar que pra ele também é, óbvio que muito mais. Misturar medicações em sua comida, dar-lhe remédio todos os dias, contra a sua vontade. Tudo começou... hoje. Há poucas horas.

Notei no final de semana que algo não corria bem. Levei-o ao médico, e é difícil explicar o quão doloroso foi ver gotas de seu sangue escorrendo quando chegamos. Precisei deixar o consultório, tomar um copo d’água e respirar fundo para clarear minha vista e não desmaiar. Também foi incômodo ao receber o diagnóstico, ser encaminhado para um especialista e ter que marcar consultas e mais consultas – não vamos falar do lado financeiro, não quero me incomodar com os gastos que terei com exames e cirurgias futuras. "Mas não é nada grave, vai ficar tudo bem", me disseram.

De volta para casa, tive que lhe dar o remédio. Seus gritos ricochetearam nos ouvidos e acertaram em cheio meu peito. Eu suava. Mal sei se consegui aplicar a dose correta da medicação, queria apenas sair correndo dali para que parasse de se debater e de me amaldiçoar. Vi mais sangue, interrompi o que tinha de fazer. Pedi-lhe perdão. Muitas vezes. Ele não entendeu. Continuou me olhando, gritando.

Ainda não sinto pudor em dizer que chorei. E ainda tremulo os lábios quando me forço a recordar aquele instante, querendo evitar a nova sessão de amanhã. Ok, talvez eu esteja mais preparado, ele aceite melhor a situação...

Ou não. Ou talvez seja apenas um lindo pássaro, rebelde, já de idade avançada, com problemas hepáticos e uma fratura de bico e que me continuará repelindo toda vez em que eu me aproximar de sua gaiola. Tudo bem, não importa tanto. Queria apenas vê-lo bem. Agora. Ou voltar a julho de 2000 para impedir aquele eu mais jovem e realmente feliz indo ao pet shop buscando seu novo animal de estimação. Talvez isso permitisse que o tal pássaro, hoje doente, indefeso e raivoso, ganhasse o dono que realmente o merecesse.

Desculpe.

Um comentário:

Poesia Trivial disse...

Cara, que coisa tri!

Nossa, muito intenso o texto - ainda mais quando se vive isso. Interessante ver a narrativa do momento de alguém, que é o nosso momento real.
Incrivel.

Olha, gostei muito da tua escrita e, se não te importares, vou colocá-lo nos favoritos do meu novo blog; inclusive, se quiseres, dê uma passada por lá.

Mais uma vez, meus parabéns e, um forte abraço!