sábado, 10 de novembro de 2007

Chuva torrencial

Um velho ditado escandinavo diz que pessoas de caminhos opostos, quando se cruzam e descruzam em seguida, tornam-se opostas ao que eram antes do encontro.

Mas aquele cara nunca gostou de provérbios. Nem dos chineses, que estão na moda, e muito menos dos escandinavos, que ninguém conhecia. E, certamente, ele não pensou em nenhum adágio (nem o da cigarra e das formiguinhas) quando fugiu da repartição 40 minutos antes do término de seu expediente naquela tarde quente de dezembro.

E também posso apostar o quanto quiserem que ele sequer cogitou a hipótese de imaginar em um aforismo quando, ao dobrar a esquina, o sol se esvaiu e uma nuvem pesada e negra tomou conta do céu.

Apesar da tempestade torrencial iminente, preferiu voltar para casa a retornar ao trabalho. Petulante, tentou até andar mais rápido do que a aproximação da chuva. Quase conseguiu, mas a alguns quarteirões de sua casa, foi surpreendido por uma tromba d’água, no mínimo, aterrorizante.

Instantes depois de amaldiçoar a si mesmo por não ter consigo um guarda-chuva qualquer, tomou uma atitude precipitada. Ao atravessar a rua, enfiou-se sob uma sombrinha alheia, que servia de abrigo para uma mulher que se preparava para atravessar a avenida.

Sabia que a sua nova parceira de guarda-chuva olharia feio ao notar a estranha e inesperada companhia. Agiu então com naturalidade e cinismo, como se fosse normal se enfiar sob um guarda-chuva alheio, decidiu não retribuir a repreensão visual. Mas não foi bem isso o que aconteceu.

“Além de não me falar tchau da última vez, não vai nem pedir licença?”, reclamou a conhecida voz feminina que partia de sua esquerda.

“Ah, tá brincando!? Nossa, quanto tempo!”, surpreendeu-se, com um sorriso brotando no rosto molhado.

“Tanto que eu nem lembro mais quanto. E aposto que você também não. Você nunca se lembrava e nem se importava com nada!”, censurou a mulher.

“Eh... desculpa, eu também não lembro. Pra falar a verdade, estava pensando nisso hoje de manhã e fiquei confuso. Não sei se faz cinco anos, dez meses e 28 dias ou se cinco anos, dez meses e 29 dias”, lamentou.

“Como assim, você se lembra? Aposto que está inventado! Você sempre inventava historias...”

“Não, não. É verdade. Não foi em fevereiro que a gente terminou...”

“Você terminou, lembra? Ou você se esqueceu desse detalhe?”, ironizou a garota.

“Desculpe. Não foi em janeiro que eu terminei com você? Então... mas agora eu não lembro se aquele domingo era dia 16 ou 17. E... bom, como hoje é dia 15 de dezembro... E também tem que eu sempre confundo as contas quando tem um ano bissexto no meio”

“Me estranha você se lembrar de uma data como essa. Você nunca se importou com nada. E, pra falar a verdade, aposto que ainda não se importa”.

“Não é bem assim. Você pode não acreditar, mas eu mudei um bocado nesses últimos cinco anos, dez meses e 28 ou 29 dias”

“Aposto que não. Por exemplo, tenho certeza de que você não sabe que dia foi o nosso primeiro beijo”.

“10 de março, né?”.

“Hmm... é. Mas e daí? E o dia do meu aniversário, você lembra?”, inquiriu a mulher.

Silêncio.

“Tá vendo? Sabia, você não mudou!”, exclamou vitoriosa.

Andaram mais alguns passos em silêncio sob o guarda-chuva até que ele parou. Ela, assustada, também. E ele começou a falar com o mesmo orgulho que teria se tivesse descoberto a teoria da relatividade.

“Sabe quando foi a última vez que a gente pegou chuva?”, perguntou.

Mais um silêncio.

“Foi quando eu te pedi em namoro. E isso foi em 23 de maio”.

“Grande coisa. Mas do número do meu apartamento você não deve se lembrar também!”

“Não. Mas lembro que a escada de emergência onde você me escondeu quando seu pai chegou mais cedo em casa em uma sexta à tarde tinha 18 degraus”.

Pela primeira vez na conversa ela riu. E ele aproveitou o momento para dar mais uma prova de que era um novo homem. E de uma forma, no mínimo, inesperada.

“Lembra essa casa vermelha, que na época era amarela?”

“Esse puteiro, você quer dizer?”, corrigiu a mulher.

“Eh... é, digamos que sim. Você sabe que ele é bem especial pra mim, né?”

“Aham, você me disse. Foi nele que você perdeu a virgindade, com 13 anos de idade”, respondeu, meio entediada.

“Não, era mentira. Eu perdi minha virgindade com você, e com 16 anos. Mas é que foi na frente dele que...”

Foi na frente dele que os dois ex-namorados mataram as saudades. Cinco anos, dez meses e 28 (ou 29?) dias depois.

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