Certo tempo atrás, em um período perdido no passado que já não posso mais especificar, tive um professor de literatura que mudou minha visão de mundo em alguns aspectos.
Tudo isso começou em uma certa manhã, quando lia um livro qualquer enquanto ia para o colégio de metrô. Saí do vagão, subi as escadas rolantes, atravessei algumas ruas, desviei das pessoas paradas nas calçadas e entrei na escola ainda com os olhos presos nas letras impressas naquelas páginas. Meu professor, vendo isso, pediu para falar comigo no final daquele dia.
Fui à sala dos professores naquele dia e ele me pediu para sentar à sua mesa. Perguntou por que eu gostava de ler, por que tinha escolhido aquele livro, se estava mesmo gostando da leitura e qual era a minha aspiração profissional. Respondi que tinha achado aquele livro perdido na estante de casa e que comecei a ler porque gostava disso. Ele pareceu se assustar, mas conteve a expressão facial surpresa e me propôs um desafio. “Que vai ser muito útil para o seu futuro”, garantiu.
Não sabia muito do que se tratava tudo isso, mas mesmo assim aceitei. No dia seguinte, ele apareceu na sala com dez livros de tamanho, capas, assuntos e autores diferentes e pediu para falar comigo na saída. Perguntou se eu já tinha lido algum deles e, ao ouvir a minha negativa, começou. “Esses livros são fundamentais para a educação de um jovem de 15 a 17 anos. Vou emprestá-los a você para que leia, mas com algumas condições. É para você ler apenas duas páginas de cada um de forma progressiva”.
Ao ver a minha cara de interrogação, explicou melhor. “É assim: você vai ler as duas páginas inicias deste aqui. Depois, vai pular as duas primeiras desse e ler as seguintes. Assim que terminar, vai passar para a quinta página daquele. Você só vai voltar no primeiro depois de ler duas páginas de cada um dos outros dez. Mas não é para ter seqüência. Se você leu as páginas 1 e 2 deste, então vai só voltar para ler a 21 e a 22. E assim sucessivamente. Entendeu?”.
Respondi positivamente com a cabeça. E aí ele terminou: “Só que tem mais uma coisa. Depois de ler a cota de duas páginas de cada livro, quero que você faça um resumo daquilo que você assimilou. E quando você terminar tudo isso, quero que me conte as histórias de cada um, com o máximo de detalhes de que conseguir se lembrar. Para daqui uma semana. E um pedido especial: não leia resumos na Internet. Aí eu te explico o porquê de tudo isso”.
Voltei para casa aquele dia ainda imaginando como seria aquela aventura e qual a finalidade disso tudo. Quando abri a porta do meu quarto, joguei a mochila na cama e fui ler as capas dos livros que teria pela frente. Eram completamente diferentes: Quincas Borba (Machado de Assis), 1984 (George Orwell), Senhora (José de Alencar), Apanhador no campo de centeio (JD Salinger), Laranja Mecânica (Anthony Burgess), Primo Basílio (Eça de Queiroz), Édipo Rei (Sófocles), Triste fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto) Budapeste (Chico Buarque) e Hamlet (Shakespeare).
Pouco a pouco, fui tentando ler cada um dos livros, aos moldes do pedido do professor. Inicialmente, fazia os resumos com certa dificuldade, demorando um bocado para escrever e com pouquíssimos detalhes. O professor lia e não falava nada. Alguns dias depois, fui ampliando os detalhes que conseguia captar e com muita agilidade. O professor lia e não falava nada.
Quando terminei, fiz os resumos, tentando imaginar o que havia acontecido ao longo daquelas 20 páginas em que eu fiquei sem ler. Entreguei os dez textos um dia antes do prazo. O professor leu, me olhou, deu um sorriso e falou que já tinha terminado. “Muito bem, está ótimo. Você será um ótimo profissional”, concluiu, quando leu o ponto final na última página.
Dei as costas, com um pouco de dor de cabeça e lotado de informações. Mas feliz, porque tinha lido dez livros e sabia exatamente do que cada um havia tratado.
...
Claro que nenhum professor em sã consciência faria isso com um aluno. Muito menos um de literatura, que faria com que o jovem lesse de forma forçada dez dos livros mais importantes para alguém se interessar pela leitura.
Claro que não li dez livros de uma vez lendo duas a cada 20 páginas. E é óbvio também que não fiz resumos detalhados das páginas que li e muito menos das histórias finais. É humanamente impossível e cronicamente inviável.
Claro que não é possível que uma pessoa que viveu essa maratona em capas duras tenha saído feliz. Não dá para fazer coisas, ainda que você goste, sem continuidade. A continuidade talvez seja o segredo para trabalhos bem feitos. É muito provável que alguém sujeito a tal desafio ficaria infeliz e acumularia ódio pelos dez livros. E pelo professor também.
Claro que essa história não é verídica.
Ou é?
Um comentário:
Impressão minha ou não é de descontinuidade lçiterárea que estamos falandO?
(Agora com internet em casa!)
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