O orgulho é um sentimento esquisito, prejudicial para uma boa vida em sociedade por motivos lógicos. Muitas vezes, ele é o responsável pelo fim de amizades (que muitas vezes já estão estremecidas), de relacionamentos promissores e pelo acontecimento até de alguns crimes. Basta pegar alguma edição do extinto Notícias Populares, que vai conter pelo menos algum assassinato causado pela soberba.
Mas sempre tem um outro lado. Não que seja muito bom armazenar o orgulho, mas é um sentimento que às vezes pode protagonizar algumas situações engraçadas. A que vem a seguir, por exemplo, não é tão impossível de acontecer por aí. Não mesmo. Embora se trate de um puro devaneio causado de madrugada depois de quase uma semana sem internet.
Conheciam-se há pouco mais de um ano. Tinham algumas coisas em comum, como o curso universitário que faziam na mesma faculdade, mas em períodos distintos. Tiveram o primeiro contato de uma forma talvez normal, na biblioteca. Ele procurava esclarecimento em Sócrates, enquanto ela era mais adepta aos clássicos de Goethe. Acabaram se esbarrando em um meio-termo, na estante com livros do Bandeira.
Passaram meses intensos, trocando mensagens diárias e vendo-se pelo menos uma vez a cada 15 dias. O cara tinha um jeito bacana de se comunicar timidamente, enquanto a garota tinha um estilo engraçado aos olhos do rapaz. Até que um dia pararam de se comunicar, sem um motivo que fosse lá muito relevante. Ficaram talvez oito meses sem se encontrarem, sem se esbarrarem acidentalmente. Apenas uma vez, no mesmo lugar onde se conheceram, durante um dia das férias. Ele devolvia um livro do Dostoievski, enquanto ela procurava por explicações em Pierre Bourdieu. Haviam trocado de interesses. Mas foi um encontro casual, e os dois e cumprimentaram apenas por obrigação social. E continuaram sem se falar. Apenas pensavam um no outro quando o tédio parecia bater. E só.
Voltaram a ter contato apenas seis meses depois do encontro na biblioteca. Acidentalmente, a garota atravessara a rua correndo ao mesmo tempo em que o rapaz jogava conversa fora com alguns amigos esperando o semáforo abrir do outro lado da calçada. Ele não estava muito entretido no assunto com os amigos, tanto que elogiou a roupa que a garota usava e se desvencilhou do grupo para trocar algumas palavras com a antiga amiga. Ela achou estranho o contato, mas deixou que a conversa fluísse.
Depois de umas duas horas de conversa, despediram-se e prometeram se encontrar algum dia novamente em algum lugar incomum para as ‘pessoas normais’, mas comum aos dois.
Como não podia ser diferente aos dois, cruzaram-se na fila do caixa de uma livraria. Ela levava um livro do Marcelo Rubens Paiva, enquanto ele esperava para pagar um do Érico Veríssimo. Era junho, dia do aniversário dela. Ele lembrou, deu os parabéns e lhe pagou um almoço. E conversaram por mais duas horas.
Perceberam que tinham muita coisa em comum e combinaram de se encontrar mais uma vez, desta vez em um lugar comum para todos, mas incomum para eles. Foram para um bar. Passaram muito mais do que duas horas conversando, bebendo, conversando e bebendo. Em plena segunda-feira. Contaram histórias íntimas e se sentiam mais próximos do que o normal a cada palavra, a cada troca de olhar, a cada sorriso. Ela disse que um dia mostraria fotos da infância para ele, que propôs que o encontro acontecesse em sua casa. Bastava manterem o contato depois disso – algo que não era impossível, visto que trocavam pelo menos 20 e-mails por dia.
Despediram-se e não prometeram se ver novamente: tudo já estava marcado para um próximo encontro. Bastava alguém tomar iniciativa e combinar o dia, o horário, a marca da bebida... Não seria nem um pouco complicado.
Mas aconteceu que nada aconteceu durante os dois meses que se seguiram. Todos os dias ele abria as suas cinco caixas de e-mail esperando encontrar o nome da garota, enquanto ela mantinha viva a esperança de receber uma mensagem a qualquer momento. Fosse por carta, e-mail, mensagem de celular. Qualquer coisa, mas ele deveria tomar a iniciativa e se comunicar.
Como não se falaram, acabaram perdendo contato mais uma vez e vieram se encontrar de mais um modo incomum. Meio sonolento em um sábado de manhã, ele decidiu parar em uma cafeteria de esquina, comprar um café grande e acordar de vez. Mas sequer precisou comprar coisa alguma, pois despertou ao ver um borrão amarelo enquanto revirava a carteira para pegar o dinheiro trocado e pagar a xícara de café. Sismado, colocou o óculos e percebeu que o borrão amarelo se tratava de um casaco. No corpo da garota.
O coração dele teve um leve disparo. A taquicardia só foi contida com um movimento da mão esquerda, que aumentou o volume da música que tocava em nos fones de ouvido. Descordenado, colocou no máximo. E então ele passou a disfarçar o olhar, fingiu um bocejo, fingiu mexer as pernas no ritmo da música. A esse tempo ela já o havia percebido. Então, pegou espelho e arrumou a franja do cabelo para ter alguma coisa para fazer. Até porque a franja já estava arrumada.
Ficaram nesse fingimento mal feito durante dois minutos. Foi quando ele passou por ela e simulou um esbarrão na senhora da mesa ao lado para poder fingir que não viu a amiga. Ela, por sua vez, chamou o garçom e pediu mais um café. A xícara que chegou à mesa dela no momento em que o rapaz atravessava a rua meio aturdido, olhando para os dois lados várias vezes.
Quando os dois chegaram em casa, ligaram os computadores e abriram suas caixa de e-mail. Os dois clicaram na opção para criar uma nova mensagem. Os dois digitaram uma mensagem bastante longa. Os dois leram três vezes a mensagem antes de editar algumas partes. Os dois saíram nas janelas de seus respectivos apartamentos antes de enviarem as mensagens (ela acendeu um cigarro nesse meio-tempo e ele procurou um até se lembrar de que não fumava). Os dois voltaram para os computadores e digitaram mais algumas linhas.
Até que os dois, impulsivamente, desligaram os computadores sem enviar as mensagens.
E ficaram pelo menos mais um ano sem se encontrar.
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