Faz dez anos, eu estava jogando futebol no pátio da escola com meus amigos da quarta série. O sinal para a entrada bateu faltando cinco minutos para as oito, alertando que todos os alunos do primário tinham que formar uma fila. Era sexta-feira, dia em que a diretora apareceria por lá para cantarmos o Hino Nacional. Eu acho.
Quando o ploc-ploc do salto da Dona Hermandina ecoou no pátio, todos se calaram. A diretora da escola, o falido Ateneu Ricardo Nunes, já tinha lá seus 80 anos, mas apesar da idade bem avançada conseguia respeito total de todas as criancinhas do colégio. Sempre sisuda, com vestidos de cores fortes e apenas uma mecha branca no cabelo, bastava dar um olhar penetrante para algum de nós que todos abaixavam a cabeça.
Eu sabia que a Dona Hermandina gostava de mim. Sempre fui um bom aluno, nunca tinha dado trabalho da pré-escola até aquele dia (tirando meu primeiro dia de aula). Ela sabia que eu era um menino bonzinho, sempre me elogiava, tinha um bom relacionamento com a minha mãe e sabia que eu entrei na escolinha com quatro anos já sabendo ler e escrever.
A nossa diretora também sabia que eu era absurdamente tímido para falar que já sabia ler e escrever à professora do pré (e pensar que, se eu tivesse aberto a boca, poderia ter pulado um ano e pegaria meu diploma acadêmico dentro de três meses). Sempre gostei da Dona Hermandina, apesar de ela me botar um medo danado. Mas naquele dia... naquele dia eu olhei para ela e não baixei a cabeça novamente. Sei lá, estava meio... ahn, não sei, estava um tanto chateado e pouco me importando com as conseqüências (não, não era uma rebeldia).
Depois do Hino e do sermão semanal da dona do colégio, os alunos foram liberados para irem para as respectivas salas. Quando a quarta série estava saindo do pátio, ela me puxou pelo braço e disse que queria falar comigo. “Putz, será que eu fiz alguma besteira?”, pensei. Meus amigos pegaram o corredor e entraram para a aula, e eu fiquei lá sozinho com a Dona Hermandina.
“Não vai me dar um abraço?”, ela perguntou. Com um pouco de medo, dei um abraço tímido na diretora, que logo sentenciou: “Eu sabia, Felipe. Olhei para você hoje de manhã e vi que você, um menino cheio de alegria que todos os dias chegava feliz da vida com um olhar todo brilhante, hoje estava tristinho. E seu abraço está vazio. Que aconteceu?”.
Não sabia o que responder e tentei desconversar, falando “não, está tudo bem”. “Ora, Felipe, você nunca mentiu para mim. Eu sou sua amiga”. Relutei, reforcei que estava tudo bem. Ela não acreditou. “Está tudo bem com a sua família…?”.
Ela tocara exatamente na minha ferida. Meus pais haviam se separado há menos de um mês, e eu odiava tocar nesse assunto. Eu, com dez anos, acreditava que minha família era perfeita. Ter pais separados era... um terror. Todos os dias rezava para meus pais voltarem, e naquele dia eu tinha acordado um pouco sem esperanças.
“São seus pais, não é mesmo?”, ela perguntou. Balancei a cabeça afirmativamente, deixando uma lágrima escapar. Chorando, acabei contando tudo para ela, que ficou quase uma hora no pátio conversando comigo. Ao final, pediu um novo abraço. “Vai ficar tudo bem, querido. Mas queria conversar com você, fiquei preocupada. Mas seu abraço ficou mais feliz agora”. E sorriu para mim. Em seis anos de Ateneu, poucas vezes a tinha visto sorrir.
Dez anos se passaram e até hoje não sei como a Dona Hermandina soube que justamente naquele dia eu estava mal. Até achei que a minha professora, ou até mesmo a minha mãe tinham conversado com ela. Não sei. Às vezes, gosto de acreditar que meu olhar demonstrou mesmo a minha tristeza. Sempre fui assim, alguém além da minha mãe tinha que saber isso.
Dia desses, recebi a notícia de que a Dona Hermandina morreu este ano. Tive a mesma sensação de quando passei um dia na frente do Ateneu e vi minha primeira escola falida. Nunca tinha contado essa história para ninguém, e agora sei que nunca vou ter a chance de saber como ela soube da minha tristeza naquela manhã de sexta-feira. Ok, me entristeci lembrando esse fato. E nem precisei ver meu olhar no espelho para perceber.
5 comentários:
"eu entrei na escolinha com quatro anos já sabendo ler e escrever" mimimi. Não fica se achando por isso não, que você não é o único.
:0)
De qualquer jeito, tadinha da Dona Hermandina... é tão legal encontrar pessoas que conseguem perceber como os outros se sentem, né? :]
Beijo!
Já estava me preparando para deixar um comentário perguntando o que tinha acontecido com a Dona Hermandina (acho que nunca tinha ouvido esse nome, hehehe).
Eu também já tive uma dessas figuras-velhinhas-escolares-inesquecíveis, a Dona Maria de Lourdes, que era professora e não diretora do colégio.
Me deu aula na quarta série e gostava pra caramba de mim. Já naquela época, nos idos de 1994, ela deveria ter uns 70 anos... Não sei se ainda está viva, mas tenho muita saudade até hoje.
Prezado Felipe...
Eu tambem estudei no Ateneu Ricardo Nunes, bem antes de vc, acho que provavelmente em 1978/79.
Mas me lembro da Dona Hermandina como se fosse ontem!!! quando li sua descrição ela pareceu saltar a minha frente!!!.
Minhas recordações não são nadas boas desse periodo, pois eu passava mais tempo de castigo nos corredores do colégio do que na sala de aula.
Mas os piores momentos com certeza foram com Dona Hermandina!!! até puxar meu cabelo e dar beliscões ela fazia... tudo bem que eu não éra um santinho but...
Fiquei muito contente em poder conhecer embora tarde esse lado mais humano dessa Honrrosa Senhora, que Deus a ilumine e a receba em Paz.
Quanto ao colégio, é uma pena que tenha falido, será que conseguimos algumas fotos??
Um grande abraço
Rogerio Renzo Romano
Tambem estudei no ateneu, estava no jardim ou pré eu acho, mas impressionante lembrar da dona hermandina e de toda a escola, realmente uma pena a escola ter fechado, é como apagar uma pagina de nossas vidas.
Quanto a dona hermandina com certeza esta no céu.puxando as orelhas de alguns anjinhos levados.
Renato R Romano.
Nossa!!!
Que saudades.....
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