A simbiose entre ambos era uma coisa impressionante, evidente a cada sustenido cirurgicamente implantado para cada colcheia. A melodia produzida por aquelas teclas era o que mais perto se pôde chegar da perfeição naquela noite. Era o aguardado reencontro entre criador e criatura. O pianista e sua composição.
De olhos fechados, o pianista deslizava delicadamente os dedos pelas teclas enquanto tinha a cabeça inclinada para o teto. A respiração constante e o sorriso de meia boca tatuado no rosto indicavam que o artista estava prestes a entrar um estágio interessantíssimo de transe.
A tranquilidade era assustadora.
A tranquilidade era falsa.
Os pés denunciavam o enorme conflito enfrentado pelo pianista durante aquele longo solo. Agitados, sapateavam sobre o palco. Esporavam o vazio, sambavam um blues boogie-woogie intercalando-o com passos de jazz e chocavam-se pelos calcanhares como um personagem de desenho animado.
Os sapatos impecavelmente engraxados afundavam-se nos pedais do piano, como se quisessem dar-lhe a partida e erguê-lo do tablado. Ao mesmo tempo, ditavam o ritmo daquela e de várias músicas que passavam pela cabeça daquele gênio claramente perturbado.
Era aquela atitude tresvariada daquele ser que não sabia estar em transe ou em surto que garantia à performance um status encantador. Porque a perfeição... a perfeição não está nos extremos, mas nos incontáveis intervalos entre eles.
Mas não sou eu quem o diz. E sim o jovem músico que havia repousado o violino sobre o colo e, hipnotizado, não se atrevia sequer a respirar para não perder um milissegundo daquela explosão de genialidade do renomado pianista. Acompanhando-o com o olhar fixo e brilhante de uma criança que vê algo fantástico. Com um sorriso de uma pessoa apaixonada que acaba de receber uma resposta positiva para um jantar. E tentando reproduzir com os pés os movimentos do ídolo com quem dividia o palco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário