Aqueles desenhos animados nunca haviam feito o menor
sentido: onde já se viu enterrar um tesouro, e ainda por cima fazer um mapa
para indicar – para qualquer um que tenha a ventura de encontrar aquele rolo de
pergaminho – onde estava guardado? Quem havia sido o idiota a criar nisso?
Eu.
Não havia me dado conta, mas aos poucos guardei um tesouro.
Valiosíssimo, na verdade. E sem fazer o menor alarde. Juntava tudo aquilo que
era de mais valioso para mim e guardava tudo comigo. Eram relíquias. Artigos únicos
em uma vida. Algo que tinha tanto, mas tanto valor... que provavelmente
passaria batido por aí.
E assim passaram-se os anos, e minha coleção apenas
aumentou. Aumentou, aumentou e aumentou... até estancar. Eu fazia de tudo para
que ela voltasse a crescer, mas nenhum esforço era válido. Não havia mais para
onde expandir minhas riquezas. Meu tesouro estava completo, era preciso aceitar
isso.
Desconfiado, sempre andava com parte de minhas relíquias. O primeiro
item guardado, a primeira preciosidade ali identificada entre um monte de lixo.
Era meu talismã, me fazia lembrar quem eu era, tudo o que eu tinha. Bastava sacá-lo
de minha carteira, recordar (e reviver, talvez em uma dimensão paralela) aquele
instante... e tudo passava. Tudo.
Mas... ah, como naquelas fábulas de quando eu era criança. Era
um tesouro amaldiçoado. Querido, porém, maldito. Tinha uma riqueza tão imensa
que me prendeu a ele, não permitia que eu vivesse a realidade e continuasse
mergulhado... naquela funesta herança. E, em um raro momento de lucidez,
percebi que era necessário abrir mão de tudo aquilo.
Guardei todas as minhas mais valiosas riquezas em uma urna. Apenas
eu sabia o quanto era doloroso e dolorido me desgarrar de tudo aquilo que com
tanta batalha, com tanta entrega, com tanta alma e com tanto coração eu havia
conquistado. Mas também tinha a certeza de que não poderia mais dividir minha
lucidez com todo aquele sinistro despojo.
Só que... não. Não poderia jogar no lixo toda aquela
preciosidade. Pensei em doá-lo a alguém de confiança, mas... não. Ninguém além
de mim saberia dar o verdadeiro valor a tudo aquilo. O melhor a se fazer era
enterrá-lo. Em um local seguro, conhecido, sob as seguintes orientações.
Ao nascer do 17º sol da primavera, volte-se para a árvore da
praça do juramento a 31,3º ao sul e a 64,2º a oeste. Caminhe 20 passos a leste,
dobre a norte sob a indicação do banquete. Siga mais 38 passos a norte.
Trespasse a muralha de ferro a oeste, aquela que antes sempre esteve aberta em
tempos de calmaria. Percorra mais 22 passos sobre o campo relvado, escale a
muralha de ladrilhos demarcada pelo hieróglifo da peneira. A urna ali se encontrará, sob a casa erguida com
troncos e rodeada por flores de jasmim, para ser desenterrada daqui a alguns anos, depois que todos os fantasmas que a assombram sejam exorcizados.
Ali estará todo o meu tesouro. O maior de todos eles:
ingressos de shows, cinemas, contas de
jantares, passagens aéreas e rodoviárias, um mapa da pequena cumbre. Tua
declaração de amor em uma caixa de fósforos de hotel. Uma foto tua.
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